29 de mai. de 2012

Tina Modotti (1896 -1942) fotógrafa italiana

















A arte da poética V de Sophia de Mello Breyner Andresen

imagem: Jardim em  Giverny, França

Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro — aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas — coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.

(Lido na Sorbonne, em Paris, em Dezembro de 1988, por ocasião do encontro intitulado Les Belles Étrangères.)

28 de mai. de 2012

Ipê-rosa, pau-d'arco, piúna







Motivo da Rosa de Cecília Meirelles



Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

27 de mai. de 2012

Dorme de Maria do Rosário Pedreira


Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos. Fecha os olhos agora e sossega — o pior já passou há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão desvia os passos do medo. Dorme, meu amor — a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste e pode levantar-se como um pássaro assim que adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra não hão-de derrubar-me — eu já morri muitas vezes e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos agora e sossega — a porta está trancada; e os fantasmas da casa que o jardim devorou andam perdidos nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme, meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui, de guarda aos pesadelos — a noite é um poema que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

25 de mai. de 2012

Poema esquisito de Adélia Prado



Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói. 
Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo 
de eles terem seus olhos sobre mim. 
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa, 
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol. 
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai 
Ôôôô mãe 
Dentro de mim eles respondem 
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.

24 de mai. de 2012

Lester Weiss ( Brooklyn, NY 1955) - Fotografia




















http://www.ojoblanco.com/gallery/index.php

Lisboa de Eugénio de Andrade

foto: Gato em  Alfama, Lisboa

Alguém diz com lentidão:
«Lisboa, sabes…»
Eu sei. É uma rapariga
descalça e leve,
um vento súbito e claro
nos cabelos,           
algumas rugas finas
a espreitar-me os olhos,
a solidão aberta
nos lábios e nos dedos,
descendo degraus
e degraus
e degraus até ao rio.

Eu sei. E tu, sabias?

22 de mai. de 2012

Eliseu Visconti (1866-1944)



















Ex-Libris da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 

Nascido em Salerno, na Itália, Eliseu Visconti (1866-1944) veio para o Brasil ainda menino. Aqui se naturalizou e construiu sua carreira. Estrela das artes em sua época, foi ofuscado pelo modernismo - curiosamente, ele de certa forma abriu as portas para o movimento, como um pioneiro do design e da captura da luz e do colorido dos trópicos em suas telas.
http://www.eliseuvisconti.com.br/

Este é o lenço de Marília de Cecilia Meireles



Este é o lenço de Marília, 
pelas suas mãos lavrado, 
nem a ouro nem a prata, 
somente a ponto cruzado. 
Este é o lenço de Marília 
para o Amado. 

Em cada ponta, um raminho, 
preso num laço encarnado; 
no meio, um cesto de flores, 
por dois pombos transportado. 
Não flores de amor-perfeito, 
mas de malogrado! 

Este é o lenço de Marília: 
bem vereis que está manchado: 
será do tempo perdido? 
será do tempo passado? 
Pela ferrugem das horas? 
ou por molhado 
em águas de algum arroio 
singularmente salgado? 

Finos azuis e vermelhos 
do largo lenço quadrado, 
- quem pintou nuvens tão negras 
neste pano delicado, 
sem dó de flores e de asas 
nem do seu recado? 

Este é o lenço de Marília, 
por vento de amor mandado. 
Para viver de suspiros 
foi pela sorte fadado: 
breves suspiros de amante, 
- longos, de degredado! 

Este é o lenço de Marília 
nele vereis retratado 
o destino dos amores 
por um lenço atravessado: 
que o lenço para os adeuses 
e o pranto foi inventado. 

Olhai os ramos de flores 
de cada lado! 
E os tristes pombos, no meio, 
com o seu cestinho parado 
sobre o tempo, sobre as nuvens 
do mau fado! 

Onde está Marília, a bela? 
E Dirceu, com a lira e o gado? 
As altas montanhas duras, 
letra a letra, têm contado 
sua história aos ternos rios, 
que em ouro a têm soletrado... 

E as fontes de longe miram 
as janelas do sobrado. 

Este é o lenço de Marília 
para o Amado. 

Eis o que resta dos sonhos: 
um lenço deixado. 

Pombos e flores, presentes. 
Mas o resto, arrebatado. 

Caiu a folha das árvores, 
muita chuva tem gastado 
pedras onde houvera lágrimas. 
Tudo está mudado. 

Este é o lenço de Marília 
como foi bordado. 
Só nuvens, só muitas nuvens 
vêm pousando, têm pousado 
entre os desenhos tão finos 
de azul e encarnado. 
Conta já século e meio 
de guardado. 

Que amores como este lenço 
têm durado, 
se este mesmo está durando? 
mais que o amor representado?

21 de mai. de 2012

Gloxínia, siníngia, cachimbo





  • Nome Científico: Sinningia speciosa
    Sinonímia: Gloxinia speciosa, Ligeria speciosa
    Nome Popular: Gloxínia, siníngia, cachimbo
    Família: Gesneriaceae, Divisão: Angiospermae, Origem: Brasil, Ciclo de Vida: Anual

    A gloxínia é uma planta interessante. Suas folhas são grandes e arredondadas, suculentas e aveludadas e caem no outono e inverno. As flores são grandes e podem ser simples ou dobradas, de diversas cores e mesclas, e muitas vezes pintalgadas. É uma ótima planta para cultivar em jardineiras e vasos, sendo bastante comum a comercialização como planta envasada. A floração ocorre no verão. Após a murcha das folhas deve-se limpar os bulbos e guardá-los em local seco e fresco para o replantio no final do inverno. Devem ser cultivadas a meia-sombra, em substrato rico em matéria orgânica, bem drenável, com regas regulares. Tolera o frio. Pode ser multiplicada pelos bulbos, sementes ou folhas postas a enraizar.

Do verão de Maria do Rosário Pedreira



Do verão, diria uma planície lenta, quase amarela: o trigo

a enrolar-se nos pés, o oiro do sol, os cabelos

mais loiros. Um vento quente e ondulante sibilando

nas frestas de um celeiro. O fumo sonolento do calor

tornando informe o fio do horizonte. Do verão


diria também um tempo espesso onde todos

os acasos são sofríveis: duas papoilas, vermelho-sangue,

agitam a paisagem. Tu chegas e a minha pele chama-te

sete nomes em surdina. É a luz da tarde que faz o fulgor

dos fenos e aquece a roupa que abandonou o corpo

sem perguntas. As mãos podem então dar-se

todos os recados. E amanhã ninguém sabe. Fica


apenas um punhado de espigas quebradas sobre a planície

lenta; amarela, digo: as papoilas, entretanto, voaram.


Maria do Rosário Pedreira nasceu em Lisboa, em 1959.

20 de mai. de 2012

Os gregos de Sophia de Mello Breyner

Van Gogh
Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante
Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz
Neles o longo friso branco das espumas o tremular da vaga
A verdura sussurrada e secreta do bosque o oiro erecto do trigo
O meandro do rio o fogo solene da montanha
E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre
Emergiam em consciência que se vê
Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia –
Esta existência desejávamos para nós próprios homens
Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem
O estar-ser-inteiro inicial das coisas –
Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece
E também à treva interior por que somos habitados
E dentro da qual navega indicível o brilho

In: Obra Poética III. Editora Caminho, 1991

19 de mai. de 2012

Condenado estou a te amar de Affonso Romano de Sant'Anna

Condenado estou a te amar 
nos meus limites 
até que exausta e mais querendo 
um amor total, livre das cercas, 
te despeça de mim, sofrida, 
na direção de outro amor 
que pensas ser total e total será 
nos seus limites da vida. 

O amor não se mede 
pela liberdade de se expor nas praças 
e bares, em empecilho. 
É claro que isto é bom e, às vezes, 
sublime. 
Mas se ama também de outra forma, incerta, 
e este o mistério: 

- ilimitado o amor às vezes se limita, 
proibido é que o amor às vezes se liberta.

18 de mai. de 2012

Rosa Rapsodia em Azul


E por vezes de David Mourão-Ferreira

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

17 de mai. de 2012

Rick Beerhorst (1960 Michigan), USA




Tu tens um medo: Acabar de Cecilia Meireles


Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo. 
Que te renovas todo o dia. 
No amor. 
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

16 de mai. de 2012

A Máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa, 
e no fecho da tarde um sino rouco 

se misturasse ao som de meus sapatos 
que era pausado e seco; e aves pairassem 
no céu de chumbo, e suas formas pretas 

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes 
e de meu próprio ser desenganado, 

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava 
e só de o ter pensado se carpia. 

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro 
nem um clarão maior que o tolerável 

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto, 
e pela mente exausta de mentar 

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada 
no rosto do mistério, nos abismos. 

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam 
a quem de os ter usado os já perdera 

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos 
os mesmos sem roteiro tristes périplos, 

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito 
da natureza mítica das coisas, 

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão 
atestasse que alguém, sobre a montanha, 

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo: 
"O que procuraste em ti ou fora de 

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo, 
e a cada instante mais se retraindo, 

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência 
sublime e formidável, mas hermética, 

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular, 
que nem concebes mais, pois tão esquivo 

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla, 
abre teu peito para agasalhá-lo.” 

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora, 
o que pensado foi e logo atinge 

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados, 
e as paixões e os impulsos e os tormentos 

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais 
e chega às plantas para se embeber 

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar, 
na estranha ordem geométrica de tudo, 

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos 
monumentos erguidos à verdade: 

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce 
no caule da existência mais gloriosa, 

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto, 
afinal submetido à vista humana. 

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso, 
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, 

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa 
que entre os raios do sol inda se filtra; 

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem 
a de novo tingir a neutra face 

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele 
habitante de mim há tantos anos, 

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava 
semelhante a essas flores reticentes 

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora 
apetecível, antes despiciendo, 

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta 
que se abria gratuita a meu engenho. 

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa, 
e a máquina do mundo, repelida, 

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera, 
seguia vagaroso, de mãos pensas. 

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...