Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
6 de mar. de 2013
5 de mar. de 2013
Cadeira de balanço de Carlos Drummond de Andrade
(...)
o balanço manso manso da cadeira de balanço é convite ao descanso à maneira bem mineira. Se na era eletrônica uma crônica, pobrezinha, vale menos que a palhinha da cadeira (verba vana), a pedida verdadeira é tirar uma pestana devagar no remanso da cadeira de balanço. In Viola de Bolso, 1955 In Poesia Completa, pag. 387 |
4 de mar. de 2013
A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector
Heru Suryoko
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que vai se aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil mas chama-se alegria.
3 de mar. de 2013
ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
14-4-1928
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.
Para uma Menina com uma Flor de Vinicius de Moraes
Roman Urbinskiy
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
2 de mar. de 2013
Fui Sabendo de Mim de Mia Couto
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei
eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
1 de mar. de 2013
Ouriço
… tem a elegância do ouriço: por fora, é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes.
Muriel Barbery. A Elegância do ouriço. Companhia das Letras, 2008.
28 de fev. de 2013
Gratifico de Livia Garcia Roza
John William Waterhouse
Gratifico a quem encontrar meu amor.
É grande, eu sei,
mas estava desorientado.
Sonetilho de verão de Paulo Henriques Britto
Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A idéia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.
O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.
27 de fev. de 2013
26 de fev. de 2013
Idade - Maria Lúcia Dal Farra
A primavera agita zumbidos
de flores e de cio
enquanto o sol canta baixo
roçando meu anseio,
que flutua no pio das asas
na paina fresca da aragem.
Leveza:
é tudo quanto peço ao vento.
Livro de auras, 1994
Para ti de Mia Couto
Anna Silivonchik
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
25 de fev. de 2013
Pomo (de Mínima lírica) de Paulo Henriques Britto
Gürbüz Doğan Ekşioğlu
Da vida só têm substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono.
Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício,
sem realidade, sem nada.
É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.
24 de fev. de 2013
23 de fev. de 2013
Mínima poética de Paulo Henriques Britto
Poesia como forma de dizer
o que de outras formas é omitido—
não de calar o que se vive e vê
e sente por vergonha do sentido.
Poesia como discurso completo,
ao mesmo tempo trama de fonemas,
artesanato de éter, e projeto
sobre a coisa que transborda o poema
(se bem que dele próprio projetada).
Palavra como lâmina só gume
que pelo que recorta é recortada,
cinzel de mármore, obra e tapume:
a fala —esquiva, oblíqua, angulosa-
do que resiste à retidão da prosa.
De Mínima lírica (1989) [ metapoesia ]
22 de fev. de 2013
Datilógrafo de Mario Bendetti
era tão diferente era verde
absolutamente verde e com bondes
e que otimismo ter a janela
sentir-se dono da rua que desce
brincar com os números das portas fechadas
e apostar consigo mesmo em termos severos
solicitamos acusar recebimento o mais breve possível
se terminava em quatro ou treze ou dezessete
era que ia rir ou perder ou morrer
desta comunicação a fim de que possamos
e fazer-me tão-só uma trapaça por quadra
registrá-lo em sua conta corrente
absolutamente verde e com bondes
e o prado com caminhos de folhas secas
e o cheiro de eucaliptos e manhã
despedimo-nos atenciosamente
e daí em diante os anos e quem sabe
Mario Benedetti Do livro "Poemas do escritório"
Tradução de Julio Luís Gehlen
21 de fev. de 2013
Materiais (de Liturgia da matéria) de Paulo Henriques Britto
A utilidade da pedra:
fazer um muro ao redor
do que não dá para amar
nem destruir.
A utilidade do gelo:
apaga tudo que arde
ou pelo menos disfarça.
A utilidade do tempo:
o silêncio.
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