Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
17 de jan. de 2015
16 de jan. de 2015
A INVENÇÃO DE UM MODO :: Adélia Prado
willian vallim
"Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse:
"Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco ,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando ,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li :
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão."
fonte: Bagagem, 1976.
15 de jan. de 2015
Ode à gratidão :: Pablo Neruda
Grato pela palavra
que agradece.
Grato a grato
pelo
quanto essa palavra
derrete neve ou ferro.
O mundo parecia ameaçador
até que suave
como uma pluma
clara,
ou doce como pétala de açúcar,
de lábio em lábio
passa,
grato,
grandes a boca plena
ou sussurrantes,
apenas murmuradas,
e o ser voltou a ser homem
e não janela,
alguma claridade
entrou no bosque:
foi possível cantar embaixo das folhas.
Grato, és pílula
contra
os óxidos cortantes do desprezo,
a luz contra o altar da dureza.
Talvez
também tapete
entre os mais distantes homens
foste.
Os passageiros que disseminaram
na natureza
e então
na selva
dos desconhecidos,
merci, enquanto o trem frenético
muda de pátria,
borra as fronteiras,
spasivo
junto aos pontiagudos
vulcões, frio e fogo,
thanks, sim, gracias, e então
a terra se transforma em uma mesa:
uma palavra a limpou,
brilham os pratos e copos,
ressoam os talheres
e parecem toalhas as planuras.
Grato, gracias,
que viajes e que voltes,
que subas
ou que desças.
Está entendido, não
preenches tudo,
palavra grato,
mas
onde aparece
tua pequena pétala
escondem-se os punhais do orgulho
e aparece um centavo de sorriso.
.........................
Oda a las Gracias
(Ode to Gratitude)
Gracias a la palabra
que agradece,
gracias a gracias
por
cuanto esta palabra
derrite nieve o hierro.
El mundo paecía amenazante
hasta que suave
como pluma
clara,
o dulce como pétalo de azúcar,
de labio en labio
pasa
gracias,
grandes a plena boca
o susurrantes,
apenas murmulladas,
y el ser volvió a ser hombre
y no ventana,
alguna claridad
entró en el bosque.
fue posible cantar bajo las hojas.
Gracias, eres la píldora
contra
los óxidos cortantes del desprecio,
la luz contra el altar de la dureza.
Tal vez
también tapiz
entre los más distantes hombres
fuiste.
Los pasajeros
se diseminaron
en la naturaleza
y entonces
en la selva
de los desconocidos,
merci,
mientras el tren frénetico
cambia de patria,
borra las fronteras,
spasivo,
junto a los puntiagudos
volcanes, frío y fuego,
thanks, sí, gracias, y entonces
se transforma la tierra en una mesa.
una palabra la limió,
brillan platos y copas,
suenan los tenedores
y parecen manteles las llanuras.
Gracias, gracias,
que viajes y que vuelvas,
que subas
y que bajes.
Está entendido, no
lo llenas todo,
palabra gracias,
pero
donde aparece
tu pétalo pequeño
se esconden los puñales del orgullo,
y aparece un centavo de sonrisa.
.....
Thanks to the word
that gives thanks.
Thanks to the gratitude
for how excellently
the word melts snow or iron.
The planet seemed full of threats
until soft
as a translucent
feather,
or sweet as a sugary petal,
from lip to lip,
it passed,
thank you,
magnificent, filling the mouth,
or whispered,
hardly voiced,
and the soul became human again,
not a window,
soome clear shine
penetrated the forest:
it was possible again to sing beneath the leaves.
Gratitude, you are medicine
opposing
scorn's bitter oxides,
light melting the cruel altar.
Perhaps
you are also
the carpet
uniting
the most distant men,
passengers spread out
through nature
and the jungle
of unknown men,
merci,
as the delirous train
penetrates a new country,
eradicating frontiers,
spasibo,
joined with the sharp-cusped
volcanoes, frost and fire,
thanks, yes, gracias, and the Earth
turns into a table,
a single word swept it clean,
plates and cups glisten,
forks jingle,
and the flatlands seem like tablecloths.
Thanks, gracias,
you travel and return,
you rise
and descend.
It is understood, you don't
permeate everything,
but where the word of thanksgiving
appears like a tiny petal,
proud fists hide
and a penny's worth of a smile appears.
.........................
Oda a las Gracias
(Ode to Gratitude)
Gracias a la palabra
que agradece,
gracias a gracias
por
cuanto esta palabra
derrite nieve o hierro.
El mundo paecía amenazante
hasta que suave
como pluma
clara,
o dulce como pétalo de azúcar,
de labio en labio
pasa
gracias,
grandes a plena boca
o susurrantes,
apenas murmulladas,
y el ser volvió a ser hombre
y no ventana,
alguna claridad
entró en el bosque.
fue posible cantar bajo las hojas.
Gracias, eres la píldora
contra
los óxidos cortantes del desprecio,
la luz contra el altar de la dureza.
Tal vez
también tapiz
entre los más distantes hombres
fuiste.
Los pasajeros
se diseminaron
en la naturaleza
y entonces
en la selva
de los desconocidos,
merci,
mientras el tren frénetico
cambia de patria,
borra las fronteras,
spasivo,
junto a los puntiagudos
volcanes, frío y fuego,
thanks, sí, gracias, y entonces
se transforma la tierra en una mesa.
una palabra la limió,
brillan platos y copas,
suenan los tenedores
y parecen manteles las llanuras.
Gracias, gracias,
que viajes y que vuelvas,
que subas
y que bajes.
Está entendido, no
lo llenas todo,
palabra gracias,
pero
donde aparece
tu pétalo pequeño
se esconden los puñales del orgullo,
y aparece un centavo de sonrisa.
.....
Thanks to the word
that gives thanks.
Thanks to the gratitude
for how excellently
the word melts snow or iron.
The planet seemed full of threats
until soft
as a translucent
feather,
or sweet as a sugary petal,
from lip to lip,
it passed,
thank you,
magnificent, filling the mouth,
or whispered,
hardly voiced,
and the soul became human again,
not a window,
soome clear shine
penetrated the forest:
it was possible again to sing beneath the leaves.
Gratitude, you are medicine
opposing
scorn's bitter oxides,
light melting the cruel altar.
Perhaps
you are also
the carpet
uniting
the most distant men,
passengers spread out
through nature
and the jungle
of unknown men,
merci,
as the delirous train
penetrates a new country,
eradicating frontiers,
spasibo,
joined with the sharp-cusped
volcanoes, frost and fire,
thanks, yes, gracias, and the Earth
turns into a table,
a single word swept it clean,
plates and cups glisten,
forks jingle,
and the flatlands seem like tablecloths.
Thanks, gracias,
you travel and return,
you rise
and descend.
It is understood, you don't
permeate everything,
but where the word of thanksgiving
appears like a tiny petal,
proud fists hide
and a penny's worth of a smile appears.
14 de jan. de 2015
Viagem às Minas de Hélio Pellegrino
no rosto lavrado. Escalavrado. A lavra lágrima
decorre, colorada. O escropo cáustico,
amarrado e amargo em punho cego,
prossegue seu trabalho. Em vão me pego
na vertente da areia que me sabe. Eu sou, tu és,
o amplo oceano do céu é uma amplidão parada,
o eterno
roreja tempo na pedra. Ó tempo eterno
da pedra, fundado e decifrado,
mais que a barca de Pedro, pedra viva
vivendo o seu silêncio — água múrmura.
À luz da tarde
verte seus ecos e mistérios,
nas montanhas tamanhas. Arde a tarde,
e a tarde arde. É tarde, é noite, é foice, é antemanhã.
O arco-íris,
suscitado em sua cova, ressuscita. Lua nova e sol posto
nascem do mesmo estojo. Pojo. Bojo. Sangradouro
de minérios domados. Esses gados.
13 de jan. de 2015
Quando acordares lembra-te de mim :: Manuel António Pina
Marc Chagall, 1981
in Todas as palavras
12 de jan. de 2015
CALEIDOSCÓPIO :: FLORA FIGUEIREDO
Pela fresta observo a dança das cores
nos vidros recortados.
Separam-se, aglutinam-se,
desenham maravilhas
Como se bailassem calçando sapatilhas.
A cada movimento, uma surpresa,
a mesma flor concebida com destreza,
em seguida se espalha e se desfaz.
Por trás de seu processo giratório,
o caleidoscópio avisa:
a forma é fugaz e imprecisa
e o colorido de hoje é provisório.
In: O Trem Que Traz a Noite, 2000
11 de jan. de 2015
Uma vez :: Idea Vilariños
sou meus filhos
e sou o mundo
sou a vida
e não sou nada
ninguém
um pedaço animado
uma visita
que não esteve
nem estará depois.
Estou estando agora
quase não sei mais nada
como uma vez estavam
outras coisas que foram
como um céu distante
um mês
uma semana
um dia de verão
que outros dias do mundo
dissiparam.
10 de jan. de 2015
DISCURSO DE NOIVADO APÓS O JANTAR:: HANS MAGNUS ENZENSBERGER (Kaufbeuren, Alemanha 1929)
Este eu, um recipiente, que
desde que ninguém o abra,
parece compacto, liso
como um ovo Kinder,
quase apetitoso. Somente lá,
no interior, está escuro. Quem sabe
o que estará dentro, à tua espera.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques em segunda mão,
desejos infantis.
Que tu a desejes ter,
a esta prenda embrulhada,
roça o milagre.
9 de jan. de 2015
Lembranças :: Manuel António Pina
1. Deveria lembrar-me de lembranças minhas, mas lembro-me de lembranças alheias (lembranças de pessoas que nunca conheci nem nunca me conheceram).
2. Um dia, há muitos anos, cruzei-me na rua comigo numa cidade estrangeira. Recordo agora, do lado de fora, esse instante.
in Todas as palavras - poesia reunida
8 de jan. de 2015
7 de jan. de 2015
6 de jan. de 2015
Só um desejo :: Mário de Andrade
fonte: Mario de Andrade : fotografo e turista aprendiz. São Paulo, SP : USP/Instituto de Estudos Brasileiros, 1993.
5 de jan. de 2015
A DESPEDIDEIRA : MIA COUTO
" ( ...) Há muito tempo , me casei , também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não deixou a mim . Que eu já era outra , habilitada a ser ninguém . Às vezes , contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem . Lembro o tempo em que me encantei , tudo era um princípio . Eu era nova , dezanovinha .
Quando ele me dirigiu palavra , nesse primeiríssimo dia , dei conta de que , até então , eu nunca tinha falado com ninguém . O que havia feito era comerciar palavra , em negoceio de sentimento . Falar é outra coisa , é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes , suspensos sobre o abismo . Falar é outra coisa , vos digo . Dessa vez , com esse homem , na palavra eu me divinizei .
Como perfume em que perdesse minha própria aparência .Me solvia na fala insubstanciada .
embro desse encontro , dessa primogénita primeira vez . Como se aquele momento fosse , afinal , toda minha vida . Aconteceu aqui , neste mesmo pátio em que agora o espero .
(.....)
Nesse mesmo pátio em que se estreava meu coração tudo iria , afinal acabar . Porque ele anunciou tudo nesse poente .
Que a paixão dele desbrilhara . ( ...)
Pedi-lhe que viesse uma vez mais . Para que , de novo , se despeça de mim . E passados os anos , tantos que já nem cabem na lembrança , eu ainda choro como se fosse a primeira despedida . Porque esse adeus , só esse aceno é meu , todo inteiramente meu .
Um adeus à medida de meu amor . Assim , ele virá para renovar despedidas . Quando a lágrima
escorrer no meu rosto eu a sorverei , como quem bebe o tempo .Essa água é , agora , meu único alimento . Meu último alento . Por isso , refaço a despedida .
Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso ."
in: O Fio das Missangas.
4 de jan. de 2015
Gosto da noite :: Florbela Espanca
Ekaterina Panikanova ( San Pietroburgo 1975 )
Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
Florbela Espanca
Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
Florbela Espanca
3 de jan. de 2015
CANTO NONO :: TONINO GUERRA
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.
Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.
Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.
In: O Mel. Tradução de Mário Rui de Oliveira. Assírio e Alvim, 2004
2 de jan. de 2015
1 de jan. de 2015
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