Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
10 de mar. de 2015
Não há guarda-chuva :: João Cabral de Melo Neto
Brassai, 1934
Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.
Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.
Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.
Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.
Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.
fonte: João Cabral de Melo Neto - Obra completa. Editora Nova Aguilar, 1994. p. 79.
9 de mar. de 2015
Notita de Frida para Diego
Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón,
6 Julho 1907 - Coyoacán, Cidade do México ,
13 de julho 1954.
Diego María de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera y Barrientos Acosta y Rodríguez
8 Dezembro 1886 Guanajuato, Mexico
24 Novembro 1957 Cidade do Mexico , Mexico
8 de mar. de 2015
ESCRITO ESTÁ NESTA ALMA O VOSSO ROSTO :: GARCILASO DE LA VEGA (1499-1536)
Catarina Bessell
Escrito está nesta alma o vosso rosto,
e quanto eu escrever de vós desejo:
escreveste-lo só; tão só o leio
que nisso ainda de vós guardo um desgosto.
Eu nisso estou e estarei sempre posto,
que não cabendo em mim quanto em vós vejo,
o bem que não entendo, nele creio,
tomando assim a fé por pressuposto.
Eu não nasci senão para querer-vos;
minha alma vos talhou em tal medida
que por hábito da alma ter-vos peço;
quanto tenho confesso ora dever-vos;
por vós nasci, por vós mantenho a vida,
por vós hei de morrer, por vós pereço.
Tradução de Anderson Braga Horta
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ESCRITO ESTÁ EN MI ALMA VUESTRO GESTO
Escrito está en mi alma vuestro gesto
y cuanto yo escribir de vos deseo:
vos sola lo escribiste; yo lo leo
tan solo que aún de vos me guardo en esto.
En esto estoy y estaré siempre puesto,
que aunque no cabe en mí cuanto en vos veo,
de tanto bien de que no entiendo creo,
tomando ya la fe por presupuesto.
Yo no nací sino para quereros;
mi alma os ha cortado a su medida;
por hábito del alma misma os quiero;
cuanto tengo confieso yo deveros;
por vos nací, por vos tengo la vida,
por vos he de morir, y por vos muero.
7 de mar. de 2015
Carlos Drummond de Andrade: A dança e a alma
Marc Chagall
A dança? Não é movimento
súbito gesto musical
É concentração, num momento,
da humana graça natural
No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança-não vento nos ramos
seiva,força, perene estar
um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...
Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir a forma do ser
por sobre o mistério das fábulas
6 de mar. de 2015
Cantiga de acordar :: Edu Lobo e Chico Buarque
MordechaiArdon
Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés
Era como um trem
Que anda sem passar
Era um tempo sem
Lugar
Mas
Foi um sonho bom
De sonhar porque
Me sonhava com
Você
E então seu canto veio me acordar
Era uma ilusão
No interior
De uma outra ilusão
Maior
Mas
Você foi pro sol
Noite me envolveu
Num silêncio igual
Ao seu
E então seu canto veio me acordar
Tudo é uma ilusão
Os que estão aqui
Esses não estão
Em si
Do universo, o além
Faunos ou mortais
Vão restar mais nem
Sinais
Tudo o que se vê
É o sonho de algum
Pobre sonhador
Todas as estrelas
Todas as misérias
Todos os desejos
E a canção do meu amor
Tudo o que se viu
Tudo o que se foi
Última ilusão
Amanhece já
Vai-se abrir o chão
Quiçá
A ilusão se esvai
É uma cena só
E a cortina cai
Sem dó
Vai cessar o som
A sessão já foi
Despertar é bom
Mas dói
Pedras vão rolar
Choram serviçais
Vão se espatifar
Vitrais
Tomba o refletor
Ardem camarins
Cai no bastidor
A atriz
Descarrila o trem
O pilar cedeu
Vai morrer meu bem
E eu
Num jardim fugaz
De espirais sem fim
Eu corria atrás
De mim
O homem se distrai
Dorme em boa fé
Sua sombra sai
A pé
Mas
Foi uma ilusão
Uma insensatez
Há que pôr o chão
Nos pés
Edu Lobo/Chico Buarque - 2001
Para o musical Cambaio, de Adriana e João Falcão
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