5 de mai. de 2015

Celia Smith - Escultura no arame

















o que eu queria dizer quando disse língua franca :: Laura Erber

cresceram em cidades distantes

o menor ainda se lembra
da lista de coisas proibidas (tv, espionagem,
camundongos)

e da letra semi-legível
e da língua de um verão tardio
que só entre eles
fazia cócegas

hoje aos 70
saberá fazer aquele gesto?
é careca?
gosta das mesmas estações?
poucas palavras?
silêncio que não é mudez?
  
vive?
  
talvez saiba discorrer sobre os sonhos de consumo da família Hayashi
talvez saiba discorrer sobre os seus próprios sonhos de consumo não consumados

sobre nossos pesadelos de consumo consumados

sobre a teoria dos signos-lutadores-de-sumô
de toda uma geração

quando trocamos mensagens sobre o assunto
você se lembrou de paralisias fulminantes
que afetam
regiões do cérebro
deixando outras
incrivelmente
fortalecidas

“talvez ele discorde da teoria de 1 milhão de idiotas
mas com certeza aprendeu alguma coisa sobre fidelidade fraternal”

não é a mise-en-scène
não é um olhar sobre a fantasia
do pequeno mundo da casa de papel
japonesa

a vida é mais
e bem menos
concreta
do que o clímax final
no jardim da mansão dos filhos do Xogum



4 de mai. de 2015

O FAZEDOR DE LUZES :: Mia Couto


Estou deitada, baixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de perfumes.
– Pai, eu quero ter uma estrela!
– Estrela, não: é muito custosa de criar.
Eu insistia. Queria possuir estrela como as outras meninas tinham brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas posses.
– Mas, pai: o senhor diz que faz criação de estrelas.
– Fazia, tive que entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas.
– Eu sei que sobrou uma.
Meu pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago, sabedor de coisas sem teor. Dedicava-se a serviços anónimos, propício a nenhum esforço. Dizia:
– Sou como o peixe, ninguém me viu transpirar.
E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem.
– É, minha filha: aprenda com o mineral. Ninguém sabe tanto e tão antigo como a pedra.
Cuidava-me sozinha, órfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o órfão, sofrendo do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Preguntas dessas são incorrigíveis: quem sabe é quem nunca responde. Na realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai: minha mãe trocou de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com os sangues todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me enevoava o adormecer.
– Você escuta os outros se lamentarem de seu pai.
– Não escuto, não – menti.
– Dizem eu não faço nada na vida, não faço nem ideia.
E prosseguia, se perdoando:
– Mas eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar a mim, exacto e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou grande, lá sou senhor, até posso nascer-me as vezes que quiser. Eu não tenho um aqui.
– Não diga assim, pai.
– Havia de ver, minha filha, lá eu não sou como neste lado: não cedo conversa a um qualquer. Pois, nesse outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda.
– Verdade, pai?
– Verdade, filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paraíso.
Voltávamos ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu velho não suportava silêncio. E, num gesto amplo, ele cobria o inteiro presépio do horizonte:
– Tudo isso fui eu que criei.
Eu estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão caseiro. E lá, pai, eles nos vêem a nós? Nada, filha, não nos vêem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo.
– Mas ela nos vê, lá nessa estrela onde foi?
O pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não se mencionava nunca nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade. Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto.
– Você nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete?
– Então, me dê uma estrela, pai.
– Nada, as estrelas não podem ser dadas. Nunca veja a noite por través das lágrimas – insistiu ele, sério.
Depois, quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última árvore.
– Está doente, pai?
– Qual doente?! É a terra que não gosta que eu saia de cima dela. A terra é uma mulher muito ciumenta.
E outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido:
– Vá lá. Escolha uma...
– Posso, pai?
E fingi apontar uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro que eu apontara. Me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para seu peito. Senti o bater do seu coração:
– Escolheu bem, filha.
E explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer. Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura. Por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência àquela que me anteriorou.
– É nessa estrela que ela está.
Agora, deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada. E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque os olhos. Tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a existência.

Mia Couto, Na berma de nenhuma estrada e outros contos, Lisboa, Caminho, 2001.

Da vista e do visto ::Eucanaã Ferraz


Mais uma vez é maio; não o levaste contigo;
horas se escrevem hoje com o lápis de sempre,
ultramar e um tanto adolescente; não o levaste,
maio, mês do meu aniversário, quando a melancolia
é menos nítida que a linha dos morros e dos edifícios;

vento sol amendoeiras, é como te digo, não levaste
maio e mesmo os meus olhos estão aqui, comigo, algo,
porém, sei que se foi contigo; que coisa era, não sei,
e, ainda que pequena, faz falta, era minha; coincidência
ou não, procuro e não encontro a minha antiga alegria.

Sentimental: poemas. Companhia das Letras, 2012.

2 de mai. de 2015

Tarde de Maio :: Carlos Drummond de Andrade

Como esses primitivos que carregam por toda parte o
maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Nunca há testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

1 de mai. de 2015

Trabalhadores :: Edvard Munch











A Escolha :: William Butler Yeats


Jean-Léon Gérôme 

O intelecto do homem é forçado a escolher
A perfeição da vida, ou do trabalho
E se escolhe a segunda tem de recusar
Uma mansão celeste, enfurecendo-se em segredo.

Quando tudo acabar, o que haverá de novo?
Com sorte ou sem ela a labuta deixou as suas marcas:
Essa velha perplexidade é a bolsa vazia,
Ou a vaidade do dia, o remorso da noite.

Tradução: Maria de Lourdes Guimarães e Laureano Silveira
In: Os pássaros brancos e outros poemas. Relógio d'Água, 2012. 
........................

The Choice

The intellect of man is forced to choose
Perfection of the life, or of the work,
And if it take the second must refuse
A heavenly mansion, raging in the dark.

When all that story’s finished, what’s the news?
In luck or out the toil has left its mark:
That old perplexity an empty purse,
Or the day’s vanity, the night’s remorse.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...