14 de dez. de 2017

Armário :: Angela Carneiro



Arrumar o armário passei um bom tempo da vida pensando em arrumar o armário passei um tempo menor da vida realmente arrumando o armário E nesse arrumar de armário há um desarrumar de emoções coisas desaparecidas aparecem no armário, na mente, no coração Pouca coisa énecessária par se arrumar o armário um pequeno banco, uma grande cesta de lixo alguma criatividade muita boa-vontade e tempo o tempo passa ao se arrumar o armário passa-se o tempo ao contrário do sentido do relógio pensa-se o tempo Caixas e gavetas coisas acumuladas pastas, recortes, papéis, apostilas, assuntos ao arrumar a coleção empilhada a ampulheta da mente revira Por que guardei isso no armário e não na memória? Por que errei esta questão na prova de história? Lixo! A bola de ping-pong o gordo atirou na prova de geometria com a área do círculo ao redor Lixo! Um papel dobrado como gaivota apenas a palavra azul desenhada a pena (ai, esse tempo que não volta e dá voltas!) E um pouco do passado é rasgado e jogado na cesta de lixo Tudo é novamente selecionado e novamente guardado no armário e na mente armariamente mente novamente armada armário novamente limpo tentativa de organizar a memória e o quarto por pouco tempo pois mais um quarto da vida será passado pensando-se em arrumar o armário.

13 de dez. de 2017

AMOR VIOLETA :: Adélia Luzia Prado de Freitas, mais conhecida apenas como Adélia Prado (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935)

Szanto

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 83

11 de dez. de 2017

Atravessou a rua :: Lia Scorsi

Atravessou a rua inquieta
O homem à moda antiga
Calça preta bem vincada
Sapatos pretos lustrosos
Camisa de branco casta
Cabelos ondinhas gris
Lápis grosso sobre o lábio
Magro, de um magro limpo.

Instante paralisado
Em seu passo lento e certo
-A tarde tornada calma-
Como se a roda d’água
De mover preciso e sempre
Despertasse outro viver
No tempo do antigo homem

AMY FRIEND (Canadá)






















10 de dez. de 2017

Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer : Clarice Lispector

Edward Burne-Jones
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia com se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois a hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.

A hora da estrela.  

6 de dez. de 2017

Abate :: Marcilio Godoi

que nome dar ao instante
em que na madrugada desperto
e começo a remoer um problema
que imenso me atordoa
em estado de assombração
no insone labirinto nevoento
do travesseiro?

logo imagino meus antepassados
agitados como eu
aflitos no meio da noite
a tempestade desabando sobre a fazenda
a dívida no banco corroendo-a
uma ameaça de morte
que nome dar ao medo
que os precipitava do sono inquieto
ao gelo úmido de lençóis
encharcados como os meus?

que natureza ansiosa antecipa-me
ao sol escuro dos despertadores
com os olhos pregados
como ovos estrelados no teto?
que nome terá o monstro da insônia
quando o pavor incerto de altas luas
recobre-me derramando essa prata
gelada e lenta sobre meus brios?

um filho doente, uma plantação danada
uma duplicata insolúvel
não há outro desejo nesse escuro
senão o de desinflamar o desespero
com o suor inquieto que derramo
pelo urro absurdo do boi atônito
em que aterrado me reconheço
na consciência solitária do matadouro.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...