24 de dez. de 2017

Solidão: a crônica sem destino :: Roberto da Matta

(...) Temos muitos demônios e anjos interiores, mas um só palco e um só cenário dentro do qual eles podem se manifestar. Na pior situação, o corpo deve surgir uniformizado. Com as emoções mais dispares devidamente orquestradas e reveladas (ou não) por um corpo que é instrumento, ator e palco de tudo que passamos. A alma em frangalhos, o corpo sereno. Ajoelhado, como manda o figurino cristão. Ou o corpo em frangalhos e a alma serena no seu perpétuo dialogo com todos os seus demônios.
Outro dado estranho da solidão é não se sentir sozinho. Parece paradoxal, mas não é. Um torcedor do Fluminense no meio da torcida do Flamengo é a pessoa mais solitária do universo. Se o diálogo que você tem com os seus outros for positivo; se você fala com todas essas estranhas criaturas que estão dentro de você, inclusive e sobretudo com os seus mortos e doentes, a solidão lhe trás uma estranha paz. A paz de Deus é a melhor metáfora para esse sentimento que chega com a vida na sua plenitude. Numa conversa franca com você mesmo como bandido, como covarde, como ignorante, como invejoso, como sovina, como boquirroto, e como renegado. Você apara suas arestas, acerta suas contas e entra em contato com aquela outra letra que segue o "A" (do amor) e o "B" (da bênção). Refiro-me ao "C" que escreve coração e compaixão. Porque sem compaixão, amigos, não há serenidade nem só nem acompanhado. Amém.


O Estado de S.Paulo. 28 Setembro 2011

23 de dez. de 2017

Uma sépala, pétala :: Emily Dickinson

Alfred Knot 
Uma sépala, pétala, um espinho,
Numa simples manhã de verão_
Um frasco de orvalho _
Uma abelha ou duas _
Uma brisa_um bulício nas árvores _
E eis-me rosa!


21 de dez. de 2017

A sombra do avião :: Alice Sant’Anna

JOCK MACDONALD
a sombra do avião atravessando

a copa das árvores não carrega ninguém

que se despeça ou tome chá

água fervida em bule de ágata

na sombra do avião não há quem acorde

com os pés pendurados pra fora do colchão

não há ninguém que uma vez tenha se assustado

com o sangue do nariz

colorindo de vermelho a cama

em plena madrugada a sombra do avião

não faz sentir saudade nem pena

nem vontade de ir com ele e cruzar

a copa ou o quarto

pode apenas olhar pra baixo

quem vê a sombra do avião

na copa entre as asas.

19 de dez. de 2017

Gosto tanto de você :: ARMANDO FREITAS FILHO


Gosto tanto de você. Parece que o conheço desde que nasci, pois é tão parecido com a gente da minha família: modo de ser, de se vestir, de falar, de ficar indignado. Neste dia em que escrevo, bem que gostaria de lhe dar um abraço daqueles apertados e até um beijo. Mas se não vou até aí, é porque não consegui me desvencilhar do medo fóbico que tenho de viagens e de avião. De todo modo, a distância que me separa de você, eu a venço com a sua lembrança. Penso no que eu poderia dizer e ouvir, construo conversas imaginárias que me parecem reais, já que tenho de cor o som de sua voz acompanhada por sua gesticulação de dedos compridos e finos como os de Murilo Mendes. É como ouvir e ver uma música e sua regência dentro de mim. Com todo o afeto e saudade. 

18 de dez. de 2017

RETRATO :: Quinita Ribeiro Sampaio

Renoir 

Fui íntima um dia
mas como me distanciei
da menina do retrato.

Já habitei sua pele
mas dela nada mais sei
não conheço
a menina do retrato.

Como seria a sua voz
e o som do riso
e o seu choro?

Em vão busco em seu olhar
um vestígio, algum resto.

Um mistério opaco encerra
a menina no retrato.

Em que dia se rompeu
o elo que nos prendia?

Em que dia ela morreu?

De Aprendizagem Pelo Avesso (2012)

16 de dez. de 2017

Sou meu hóspede :: Mario Benedetti

Picasso 
Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
....

Soy mi huésped
Soy mi huésped nocturno
en dosis mínimas
y uso la noche
para despojarme
de la modestia
y otras vanidades

aspiro a ser tratado
sin los prejuicios
de la bienvenida
y con las cortesías
del silencio

no colecciono padeceres
ni los sarcasmos
que hacen mella

soy tan solo
mi huésped
y traigo una paloma
que no es prenda de paz
sino paloma

como huésped
estrictamente mío
en la pizarra de la noche
trazo una línea
blanca

Antologia poética. [tradução Julio Luiz Gehlen]. Rio de Janeiro: Record, 1988.

14 de dez. de 2017

Armário :: Angela Carneiro



Arrumar o armário passei um bom tempo da vida pensando em arrumar o armário passei um tempo menor da vida realmente arrumando o armário E nesse arrumar de armário há um desarrumar de emoções coisas desaparecidas aparecem no armário, na mente, no coração Pouca coisa énecessária par se arrumar o armário um pequeno banco, uma grande cesta de lixo alguma criatividade muita boa-vontade e tempo o tempo passa ao se arrumar o armário passa-se o tempo ao contrário do sentido do relógio pensa-se o tempo Caixas e gavetas coisas acumuladas pastas, recortes, papéis, apostilas, assuntos ao arrumar a coleção empilhada a ampulheta da mente revira Por que guardei isso no armário e não na memória? Por que errei esta questão na prova de história? Lixo! A bola de ping-pong o gordo atirou na prova de geometria com a área do círculo ao redor Lixo! Um papel dobrado como gaivota apenas a palavra azul desenhada a pena (ai, esse tempo que não volta e dá voltas!) E um pouco do passado é rasgado e jogado na cesta de lixo Tudo é novamente selecionado e novamente guardado no armário e na mente armariamente mente novamente armada armário novamente limpo tentativa de organizar a memória e o quarto por pouco tempo pois mais um quarto da vida será passado pensando-se em arrumar o armário.

13 de dez. de 2017

AMOR VIOLETA :: Adélia Luzia Prado de Freitas, mais conhecida apenas como Adélia Prado (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935)

Szanto

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 83

11 de dez. de 2017

Atravessou a rua :: Lia Scorsi

Atravessou a rua inquieta
O homem à moda antiga
Calça preta bem vincada
Sapatos pretos lustrosos
Camisa de branco casta
Cabelos ondinhas gris
Lápis grosso sobre o lábio
Magro, de um magro limpo.

Instante paralisado
Em seu passo lento e certo
-A tarde tornada calma-
Como se a roda d’água
De mover preciso e sempre
Despertasse outro viver
No tempo do antigo homem

AMY FRIEND (Canadá)






















10 de dez. de 2017

Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer : Clarice Lispector

Edward Burne-Jones
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia com se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois a hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.

A hora da estrela.  

6 de dez. de 2017

Abate :: Marcilio Godoi

que nome dar ao instante
em que na madrugada desperto
e começo a remoer um problema
que imenso me atordoa
em estado de assombração
no insone labirinto nevoento
do travesseiro?

logo imagino meus antepassados
agitados como eu
aflitos no meio da noite
a tempestade desabando sobre a fazenda
a dívida no banco corroendo-a
uma ameaça de morte
que nome dar ao medo
que os precipitava do sono inquieto
ao gelo úmido de lençóis
encharcados como os meus?

que natureza ansiosa antecipa-me
ao sol escuro dos despertadores
com os olhos pregados
como ovos estrelados no teto?
que nome terá o monstro da insônia
quando o pavor incerto de altas luas
recobre-me derramando essa prata
gelada e lenta sobre meus brios?

um filho doente, uma plantação danada
uma duplicata insolúvel
não há outro desejo nesse escuro
senão o de desinflamar o desespero
com o suor inquieto que derramo
pelo urro absurdo do boi atônito
em que aterrado me reconheço
na consciência solitária do matadouro.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...