11 de fev. de 2019

Armário :: Luiz Fernando Verissimo.

Eu queria senhora
ser o seu armário
e guardar os seus tesouros
como um corsário
Que coisa louca:
ser seu guarda-roupa!
Alguma coisa sólida
circunspecta e pesada
nessa sua vida estabanada.
Um amigo de lei
(de que madeira eu não sei).
Um sentinela do seu leito
— com todo o respeito.
Ah, ter gavetinhas
para suas argolinhas.
Ter um vão
para seu camisolão
e sentir o seu cheiro, senhora
o dia inteiro.
Meus nichos
como bichos
engoliriam suas meias-calças,
seus soutiens sem alças,
e tirariam nacos
dos seus casacos,
E no meu chão,
como trufas,
as suas pantufas…
Seus echarpes, seus jeans,
seus longos e afins.
Seus trastes
e contrastes.
Aquele vestido com asa
e aquele de andar em casa.
Um turbante antigo.
Um pulôver amigo.
Bonecas de pano.
Um brinco cigano.
Um chapéu de aba larga.
Um isqueiro sem carga.
Suéteres de lã
e um estranho astracã.
Ah, vê-la se vendo
no meu espelho, correndo.
Puxando, sem dores,
os meus puxadores.
Mexendo com o meu interior
- à procura de um pregador.
Desarrumando meu ser
por um prêt-à-porter…
Ser o seu segredo,
senhora,
e o seu medo.
E sufocar
com agravantes
todos os seus amantes
.

10 de fev. de 2019

Minas há :: Carlos Drummond de Andrade

(...)Minas há e – acrescento – haverá sempre, se soubermos preservar certas marcas imunes à industrialização e ao cosmopolitismo, e conviventes com eles. A gente carrega Minas no sangue, por onde quer que vá… O meu “José” deve uma explicação: foi escrito em momento de crise existencial, quando eu queria fugir de tudo e de todos, e não voltar fisicamente para Minas, por motivos muito especiais. Então, Minas “não havia mais” para mim. Mas o próprio “José”, no final, procura libertar-se do desespero, marchando não sabe para onde – para Minas reencontrada no íntimo – é a explicação que me dou. Não sei se é boa. É a que eu encontro, tantos anos depois desses versos amargos.

Arquivo Francisco Iglésias/ Acervo IMS. Esta carta foi publicada no número 11 ½ da revista serrote, edição especial para a FLIP 2012.


8 de fev. de 2019

O céu sobre Berlim (Der Himmel uber Berlin) :: Ines Lourenço

No filme de Wenders, com 
versos de Handke, os anjos fingem 
estar fartos de um tempo infinito. Sonham com os pequenos tempos de sentar-se à mesa 
a jogar cartas. Ser cumprimentado na 
rua, nem que seja com um aceno. Ter 
febre. Ficar com os dedos sujos de ler o jornal. Entusiasmar-me com uma refeição ou com a curva de uma nuca. Mentir 
com habilidade. ao andar 
sentir a ossatura mexer-se a cada passo. Supor, em vez de saber 
sempre tudo. 
Cá em baixo, os humanos não suspeitam da beleza 
do peso, que os segura à terra e fingem 
o futuro em cada minuto, para 
deixar de dizer agora, agora, agora...

Inês Lourenço, "A Enganadora Respiração da Manhã.

2 de fev. de 2019

João Cabral de Melo Neto: Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:

jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...