Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
19 de mai. de 2024
13 de mai. de 2024
A fome e a vontade de comer :: Marcílio Godoi
Sebastião Salgado
Aqui vai o cardápio daquelas sobremesas: farinha de milho ou de mandioca, com açúcar cristal e leite no prato fundo. Bacia de frutos verdes e travos, colhidos no lote vago. Mandioca cozida servida ao melado de cana. Banana-da-terra em tiras ou rodelas, pulverizadas com canela.
Ao homem enfastiado, nem tanta falta lhe faz o menino como a fome do menino. Ele quer desesperadamente essa fome. Fome roendo caroço de pequi, de cajamanga até os perigosíssimos espinhos. Fome tirando fiapo de manga-espada do dente, fome ciscando o fundo da panela já sem pipoca alguma, peruá.
Fome descolando raspas de angu da caçarola, fome fritando aparas de pastéis em mentirinhas inofensivas para dar mistura ao arroz com feijão. Fome de comer dobradinha, fome de bucho de boi, esse miolo intestino. Fome de bola, de mingau de aveia, de viver, de sair correndo, fome de mingau de Maizena, de biscoito de polvilho ou quebra-quebra, fome, fome, fome.
Hoje o homem sem fome sentiu fome daquela fome do menino que foi. Fome de fim de tarde trucidando bolos e bolinhos de fubá, de milho, de chuva. Fome de mané-pelado no tabuleiro. Fome de pão dormido virando torradas pela manhã, farofa de pão, rabanada. Fome de picolezinhos de cubo feitos de limonada muito doce, congelada, atravessados na forma de palitos Gina. Fome de moer gelo pra raspadinha de framboesa.
Fome de biscoito duro molhado no café. Fome de descascar com canivete e chupar laranja-lima de baciada no pé da escada. Fome de arriscar a vida cascando cana de açúcar até reduzi-las no facão a tronquinhos de gomos brancos enxaguando molares firmes. Fome de doce de goiaba, marmelada, bananada na lata redonda da Cica, fome de doce de casca de mamão, laranja, jabuticaba. Ah, que fome, que fome linda.
Fome de paçoca de carne no pilão, fome de paçoca de amendoim com farinha de milho colada no céu da boca. Fome de comer abacate na casca com açúcar, fome de guardar o chiclete mascado sobre o dorso da mão durante o almoço enquanto mata a fome, para voltar a ele depois da sobremesa.
Fome de raspar com os dentes de baixo a tira da casca tirada do abacaxi pro doce de amor aos pedaços, fome de comer o talo do abacaxi, fome até da afta que dava fazer isso, fome de comer o amor inteiro. Fome de canjica e de canjiquinha, fome de disputar o osso da costelinha com o cachorro. Fome de cachorro, de milho cozido de volta à palha, de ovo cozido, de ovo mexido, de tudo mexido, na formidável farofa da vida, quando se tem essa fome ávida de vida.
Enfarado de tudo, o homem nunca mais se sentiu tão faminto como o menino ele. Hoje, no entanto, feliz descobriu que ainda possui uma fome. Está esfaimado do tempo em que o homem era menino e tinha aquela fome de menino famélico que o homem deixou de ser.
Hoje lhe deu fome disso, fome de não se sentir mais assim, repleto de falta de fome, insatisfatoriamente farto. Hoje lhe bateu a fome de ter aquela fome. A fome mais faminta, não, a fome mais voraz e insaciável, a fome que o erguia para o mundo desde aquele ele, esfomeado menino arado.
7 de mai. de 2024
4 de mai. de 2024
Encontros circulares:: Noemi Jaffe
existe uma ideia, partilhada inclusive pela psicanálise, de que "tudo tem um preço". embora aparentemente distante do "não existe almoço grátis", mote corporativo que me apavora, a noção é semelhante. tudo se baseia numa economia das relações, mesmo que, aqui, a palavra economia não esteja relacionada necessariamente a dinheiro, mas a uma lógica de trocas. nesse sentido, atos supostamente gratuitos, como a ajuda desinteressada a um próximo, seriam avaliados como interesse vaidoso, conquista de amor-próprio ou admiração do outro e até mesmo a "compra" de um bem imaterial.
não posso concordar. me parece que essa visão parte, a posteriori, de um pensamento já lastreado pelo economismo ou economicismo e não o contrário. se conseguirmos transcender para trás, involuirmos e não, como sempre, irmos necessariamente para a frente e para cima, mas para trás e para baixo, para os lados e para o entorno, descobriremos, acredito, a possibilidade de relações ao largo da ideia de retribuição, assim como dois macacos tirando piolhos um do outro. talvez ações brincadêiricas, jogantes, ridentes, desinteressadamente interessantes, partícipes de encontros circulares em que as trocas são dinâmicas e não devolutivas.
não significados, mas significantes que se relacionam quase autonomamente,
pensando.
Noemi Jaffe
15 de abr. de 2024
O PROBLEMA DE SER NORTE, Filipa Leal
Era um verso com árvores à volta.
Tinha o problema de ser norte
e dia e tão contrário à natureza.
Era um verso sem ar livre
mas com árvores em círculo
e eu no centro, em baixo, nas escadas
de pedra, cheia de verde e de frio
e a pensar que continuo a não entender
a natureza contrária aos meus olhos.
Pois se as árvores são a única
paisagem deste verso, a toda a volta,
e eu no fundo, em baixo, nas escadas
de pedra ainda, se voltando-me, morrendo,
serão elas ainda a única paisagem deste verso,
como poderei amá-las
sem que
um
raro
silêncio ainda
me interrompa?
Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva Editores
23 de mar. de 2024
O CAVALO NO VALE :: Hilda Hilst
O cavalo no vale.
E mais além
O meu olhar mais verde do que o vale
E claro de esperança
E querer bem.
O vento no capim.
O vermelho cansado deste outono.
Os roseirais em mim.
E tudo me parece
Tão tranquilo e leve.
E com muito cuidado
Como quem tem na mão a flor e o quadro
Espero que a paisagem desta tarde
Adormeça
O cavalo no vale
O vento no capim
Os roseirais em mim.
De Ode Fragmentária (1961)
18 de mar. de 2024
Se ao menos a morte :: Filipa Leal
Ela morria tantas vezes
em tiroteios à porta de casa
que já não sabia morrer para sempre
assim
de uma vez só.
Se ao menos se marcasse um dia
para a morte, uma hora certa
como no dentista
que apesar de tudo
nos faz esperar
onde apesar de tudo
não sabemos quando será a nossa vez.
Se ao menos a morte tivesse revistas
e gente na sala de espera
não estaríamos tão sós
tão vivos nessa ideia final
nesse desconforto.
Poríamos o nome na lista
quando estivéssemos prontos
sabendo que seria fácil desmarcar
marcar para outro dia
ou simplesmente
não comparecer.
Depois, ficaríamos com a dor,
com o terror
de passar sequer naquela rua
como ela à porta de casa.
Ela que morria tantas vezes
porque morria de medo de morrer.
Filipa Leal
17 de mar. de 2024
Três presentes de fim de ano :: Carlos Drummond de Andrade
Tibérius DrumondI
Querida, mando-te
uma tartaruguinha de presente
e principalmente de futuro
pois viverá uma riqueza de anos
e quando eu haja tomado a estígia barca
rumo ao país obscuro
ela te me lembrará no chão do quarto
e te dirá em sua muda língua
que o tempo, o tempo é simples ruga
na carapaça, não no fundo amor.
II
Nem corbeilles nem
letras de câmbio
nem rondós nem
carrão 69
nem festivais
na ilha d’amores
não esperes de mim
terrestres primores.
Dou-te a senha para
o dom imperceptível
que não vem do próximo
não se guarda em cofre
não pesa, não passa
nem sequer tem nome.
Inventa-o se puderes
com fervor e graça.
III
Sempre foi difícil
ah como era difícil escolher
um par de sapatos, um perfume.
Agora então, amor, é impossível.
O mau gosto
e o bom se acasalaram, catrapuz!
Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora
ou tem medo de dizer que é medonho?
E aquele quadro (objeto)? aquela pantalona?
Aquela poesia? Hem? O quê? não ouço
a sua voz entre alto-falantes, não distingo
nenhuma voz nos sons vociferantes...
Desculpe, amor, se meu presente
é meio louco e bobo
e superado:
uns lábios em silêncio
(a música mental)
e uns olhos em recesso
(a infinita paisagem).
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
10 de mar. de 2024
DESENHO Cecilia Meirelles
Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lágrimas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam
Isso era um lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra, ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.
Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.
Com a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.
Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.
E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.
Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.
CECÍLIA MEIRELES
in Mar Absoluto, 1945
6 de mar. de 2024
Um índio:: Caetano Veloso
Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor
Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico
Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto-sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá, fará
Não sei dizer assim de um modo explícito
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio
Compositor: Caetano Emmanuel Viana Teles Veloso
4 de mar. de 2024
Por vezes, não raro... Eucanãa Ferraz
Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.
No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.
Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.
Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.
Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.
in Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002.
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
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Tem de haver mais Agora o verão se foi E poderia nunca ter vindo. No sol está quente. Mas tem de haver mais. Tudo aconteceu, Tu...
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A ilha da Madeira foi descoberta no séc. XV e julga-se que os bordados começaram desde logo a ser produzidos pel...