E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distraindo minha sede cansada de pousar num fim. – Onde foi que eu já vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e mudo fincando no espaço... tudo à espera da meia-noite... – Estou me enganando, preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E porque a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela tremula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva.
in Perto do Coração Selvagem, p. 78
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
22 de ago. de 2012
21 de ago. de 2012
Como andar nas pedras, por Luis Fernando Veríssimo
foto: Rafael Souza
As casas e os sobrados antigos de Parati muitas vezes são fachadas para belos interiores modernos. Você literalmente pula de século quando entra por uma das suas portas. O mesmo não acontece com as ruas da zona histórica, que continuam como eram nos séculos 18 e 19, calçadas com pedras irregulares de vários tamanhos que obrigam o pedestre a andar com muito cuidado. É perigoso pisar desatento no passado, ainda mais depois de uma certa idade.(...) O calçamento das ruas do centro histórico foi feito na forma de calha rasa, sendo a parte mais baixa o eixo central da rua. Neste foram usadas pedras mais compridas e uniformes e mais alinhadas do que as outras. São as capistranas, que formam uma espécie de trilha à prova de tropeções. Pelo menos para nós, os iniciados.
E não deixa de haver uma certa justeza poética no fato de alguns dos maiores escritores do mundo terem que andar de pedra em pedra, escolhendo as mais aparentemente firmes e seguras e evitando as mais traiçoeiras. De certa maneira, é o que eles fazem quando escrevem. Vão escolhendo as palavras certas para chegar onde querem, evitando a queda e o vexame publico. Parati, para quem anda pelas suas ruas, também é um exercício de estilo.
fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2012/07/12/como-andar-nas-pedras-por-luis-fernando-verissimo-455035.asp
20 de ago. de 2012
19 de ago. de 2012
Aluna de Cecília Meirelles
Conservo-te o meu sorriso
para, quando me encontrares,
veres que ainda tenho uns ares
de aluna do paraíso...
18 de ago. de 2012
Presente de Antonio Cícero
Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mim mesmo este presente?
17 de ago. de 2012
Sonhar de Mia Couto
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
fonte: Couto, Mia. O fio das missangas. Cia. das Letras, 2004, pág. 131.
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
fonte: Couto, Mia. O fio das missangas. Cia. das Letras, 2004, pág. 131.
16 de ago. de 2012
Congea tomentosa
foto: Mauricio Mercadante
Origem: Ásia, Birmânia, Índia, Malásia,Tailândia
Altura: 4.7 a 6.0 metros
Luminosidade: Sol Pleno
Ciclo de Vida: Perene
A congéia é uma trepadeira muito vigorosa e exuberante, com textura delicada. Apesar de tropical, ela se encaixa em diferentes estilos de jardins, e pode cobrir cercas, grades, caramanchões, pérgolas, pórticos e coroar muros. Também pode ser conduzida como arbusto e cerca-viva. As podas, realizadas após o florescimento, auxiliam na formação e contenção da planta e estimulam seu adensamento. Os ramos floridos da congéia podem ainda ser utilizados como flor-de-corte em buquês e arranjos florais.
Deve ser cultivada sob sol pleno, em solo fértil, enriquecido com matéria orgânica e irrigado periodicamente. Para plantio em renques se recomenda a distância mínima de um metro entre as plantas. Trepadeira tipicamente tropical, aprecia o calor e não tolera geadas ou nevascas. Em países de clima temperado deve ser protegida no inverno em estufas. Multiplica- se por estaquia ou alporquia, após o florescimento, ou por sementes.
http://www.jardineiro.net/plantas/congeia-congea-tomentosa.html
À maneira de Szymborska de Berta Piñan
Chegados a este ponto
talvez tudo devesse ser mais simples,
a palavra lua não deveria nomear nada mais
do que a lua,
e os rios deveriam seguir até ao seu destino
sem serem alterados
pelas metáforas.
Talvez a palavra solidão não devesse
significar outra coisa além da ausência
de acontecimentos
e a palavra silêncio pudesse servir só
para calar os ruídos.
Com a língua talvez tudo devesse ser
mais simples, sem voltas
nem requebros, deixando-nos
com duas ou três questões
para seguir em frente:
um porquê, algum não sei.
E, depois, fechar a porta
que, neste caso,
deveria significar unicamente
fechá-la.
(Versão a partir do original asturiano e da tradução castelhana da autora reproduzidos em Toma de tierra - poetas en lengua asturiana: antología (1975-2010); selecção de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, p. 445).
15 de ago. de 2012
Valsa do adeus de Hélio Pellegrino
ao vento, coisas desancoradas
que se desgarram. Este copo, esta pedra
que pronuncio não são palavras, nem
versos de amor, nem o sopro
vivificante do espírito. São barcos
arrastados pelo tempo, cascas
de fruta na enxurrada, lenços
de adeus, enquanto o vapor se afasta,
e de longe ilumina essa ausência que somos.
14 de ago. de 2012
Rondel de Samuel Beckett
pela praia fora
ao final do dia
só som de passos
longo som só
que inesperado fica
som nenhum depois
pela praia fora
longo som nenhum
que inesperado parte
só som de passos
longo som só
pela praia fora
ao final do dia
1976
13 de ago. de 2012
Se tudo pode acontecer Arnaldo Antunes, Paulo Tatit, Alice Ruiz e João Bandeira
Se tudo pode acontecer
Se pode acontecer
qualquer coisa
um deserto florescer
uma nuvem cheia não chover
Pode alguém aparecer
e acontecer de ser você
um cometa vir ao chão
um relâmpago na escuridão
E a gente caminhando
de mão dada
de qualquer maneira
eu quero que esse momento
dure a vida inteira
e além da vida
ainda de manhã
no outro dia
se for eu e você
12 de ago. de 2012
Ordálio ou ordália
manuscrito latino - século 12
Outra vez, quis em vão, me ausentar do teu mundo.
Qual um eremita, mergulhar no deserto da minha alma frágil e sem calma.
Todavia, desta feita, como num ordálio previsível e sombrio, tua voz me inundou em ondas fatais, e tuas mãos, hoje calejadas, tocaram leves...
Meu sorriso guardado em caixa de papel crepom.
Heroína e vilã, eis me outra vez aos teus pés.
Rapapés a ti...
E minhas juras de volta aqui.
Meu pedido, em tom dolorido:
Cuide do teu refém, ou o deixe...
A outrem
de: Anderson Julio Lobone
Ordálio ou ordália é um tipo de prova judiciária usado para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza e cujo resultado é interpretado como um juízo divino.Também é conhecido como juízo de Deus (judicium Dei, em latim).
As práticas mais comuns do ordálio são as que envolvem submeter o acusado a uma prova dolorosa. Se a prova é concluída sem ferimentos ou se as feridas são rapidamente curadas, o acusado é considerado inocente. Na Europa medieval, este tipo de procedimento fundava-se na premissa de que Deus protegeria o inocente, por meio de um milagre que o livraria do mal causado pela prova. Apesar de haver sido amplamente praticado durante a Idade Média na Europa, o ordálio possui raízes mais antigas, em culturaspoliteistas tão remotas quanto o Código de Hamurábi e o Código de Ur-Nammu, bem como em sociedades tribais animistas, como o julgamento pela ingestão da "água vermelha" (fava-de-calabar) em Serra Leoa.
Nas sociedades pré-modernas, o ordálio era um dos três principais meios de prova que habilitavam o juiz a proferir um veredicto, juntamente com o juramento e o testemunho. Na Europa, os ordálios em geral consistiam em testar o acusado no fogo ("prova de fogo") ou na água, embora a natureza precisa da prova variasse conforme o lugar e a época. O fogo costumava ser reservado para testar acusados de origemnobre, enquanto que a água era mais usada para os plebeus.
A Igreja Católica por meio dos papas condenou sucessivamente o ordálio, por exemplo, Estêvão VI em887/888, Alexandre II em 1063[2], e mais prominentemente Inocêncio III no IV Concílio de Latrão em 1215, proibindo que o clero cooperasse com os julgamentos pelo fogo e pela água, substituindo-os pela compurgação (um misto de juramento e testemunho).[3] Mesmo assim, os julgamentos por ordálio escassearam somente no final da Idade Média, em geral substituídos pela confissão mediante tortura, mas a prática caiu em desuso apenas no século XVI nos países menos cristianizados.
Etimologia
O português "ordálio", registrado a partir de 1899, advém do latim tardio ordalium (plural ordalia), este do frâncico ordál ("julgamento", "juízo"), por meio dofrancês ordalie (1693).[1]
Outras fontes apontam o inglês antigo ordel e o germânico urthel ("julgamento", "veredicto") como a origem do francês ordalie, provenientes do proto-germânico *uzdailjam ("aquilo que é atribuído").
Meu Pai de Vinicius de Moraes
Van Gogh
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos manchados de terra
Dá-me o teu antigo paletó sujo de ventos e de chuvas
Dá-me o imemorial chapéu com que cobrias a tua paciência
E os misteriosos papéis em que teus versos inscreveste.
Meu pai, dá-me a tua pequena chave das grandes portas
Dá-me a tua lamparina de rolha, estranha bailarina das insônias
Meu pai, dá-me os teus velhos sapatos.
11 de ago. de 2012
A terceira margem do rio de Hélio Pellegrino
Com
o passar do tempo, e em virtude do processo de minha própria maturação,
percebo, literalmente, que não posso viver de ilusão. Os objetos externos se
impõem, cada vez mais e, com sua autonomia, me fazem perceber as falhas de meus
jogos – e dispositivos – imaginários. Preciso da realidade e dos outros, cada vez
com mais urgência. A negação da realidade, pela qual construí meu sentimento de
completude narcísica, tem que agora ser, por sua vez, negada. A negação dessa
negação é o simbólico. Perco a capacidade de fechar os olhos ao mundo, através
de minhas construções imaginárias mas, abrindo mão delas, vou simbolizá-las, no
mundo exterior segundo as leis que o regem e, acima de tudo, segundo as leis da
linguagem e da cultura. A linguagem, portanto, é a terceira margem do rio,
confluência do sonho e da realidade, núpcias da pulsão e do Logos, que, no
transporte da paixão, engendra o verbo. Há quem pense que, com a dominância do
princípio da realidade, o sonho se acabe. Em verdade, não acaba nunca. O sonho
é centelha que salta do desejo e é através dela que vou acender as fogueiras
através das quais o rosto do mundo se ilumina. O sonho, levado aos ombros da realidade,
que o simboliza, é o projeto profundo do homem e a teleologia da história. O
sonho, vivido, enraizado no real, que o suporta, vai ser a matriz da utopia, o
eixo das grandes transformações que fazem a grandeza do processo civilizatório.
Pellegrino, Hélio. Édipo e Paixão in: Os Sentidos da Paixão . Companhia das Letras, São Paulo, 1986. p. 311-321
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