10 de dez. de 2017

Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer : Clarice Lispector

Edward Burne-Jones
Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia com se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois a hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.

A hora da estrela.  

6 de dez. de 2017

Abate :: Marcilio Godoi

que nome dar ao instante
em que na madrugada desperto
e começo a remoer um problema
que imenso me atordoa
em estado de assombração
no insone labirinto nevoento
do travesseiro?

logo imagino meus antepassados
agitados como eu
aflitos no meio da noite
a tempestade desabando sobre a fazenda
a dívida no banco corroendo-a
uma ameaça de morte
que nome dar ao medo
que os precipitava do sono inquieto
ao gelo úmido de lençóis
encharcados como os meus?

que natureza ansiosa antecipa-me
ao sol escuro dos despertadores
com os olhos pregados
como ovos estrelados no teto?
que nome terá o monstro da insônia
quando o pavor incerto de altas luas
recobre-me derramando essa prata
gelada e lenta sobre meus brios?

um filho doente, uma plantação danada
uma duplicata insolúvel
não há outro desejo nesse escuro
senão o de desinflamar o desespero
com o suor inquieto que derramo
pelo urro absurdo do boi atônito
em que aterrado me reconheço
na consciência solitária do matadouro.

29 de nov. de 2017

O Relógio :: João Cabral de Melo Neto

Ao redor da vida do homem 
há certas caixas de vidro, 
dentro das quais, como em jaula, 
se ouve palpitar um bicho. 

Se são jaulas não é certo; 
mais perto estão das gaiolas 
ao menos, pelo tamanho 
e quadradiço de forma. 

Uma vezes, tais gaiolas 
vão penduradas nos muros; 
outras vezes, mais privadas, 
vão num bolso, num dos pulsos. 

Mas onde esteja: a gaiola 
será de pássaro ou pássara: 
é alada a palpitação, 
a saltação que ela guarda; 

e de pássaro cantor, 
não pássaro de plumagem: 
pois delas se emite um canto 
de uma tal continuidade 

que continua cantando 
se deixa de ouvi-lo a gente: 
como a gente às vezes canta 
para sentir-se existente.

28 de nov. de 2017

EURÍDICE :: Arseni Tarkovski


Uma pessoa tem um corpo,
Um só, sozinho.
A alma já está farta
De ficar confinada dentro
De uma caixa, com orelhas e olhos
Do tamanho de moedas,
Feita de pele — só cicatrizes —
Cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
Para a cúpula do céu,
Sobre um raio gélido,
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
E ouve pelas grades
Da sua prisão viva
O crepitar de florestas e milharais,
O troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
Como um corpo sem camisa —
Nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
Ao salão depois do baile,
Quando não há ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
Vestida com outras roupas:
Que se inflama enquanto corre
Da timidez à esperança;
Pura e sem sombra,
Como fogo, ela percorre a Terra,
Deixa lilases sobre a mesa
Para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não te aflige
Por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar teu aro de cobre,
Corre com ele mundo afora,
Enquanto, em notas firmes
De tom alegre e frio,
Em resposta a cada passo que deres,
A Terra soar em teus ouvidos.

27 de nov. de 2017

Amigo de Alexandre O'Neill



Mal nos conhecemos 
Inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece. 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão! 

Amigo (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado. 
É a verdade partilhada, praticada. 

Amigo é a solidão derrotada! 

Amigo é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre Manuel Vahía de Castro O'Neill (Lisboa1924 - 1986)

24 de nov. de 2017

Ciclo : Nestor Oliveira


Passa o tempo
E a vida passa
E eu 
De alma ingênua
Acredito
No sonho doce infinito
Plenitude
Enlevo e graça

Que sem tortura ou revolta
Estou cantando ao luar
Vamos dar a meia-volta
Volta e meia
Vamos dar

Depois a estrada poeirenta
Os pés sangrando em pedrouços
E apaziguando alvoroços
A alma intranquila e sedenta
Murchessem todas as flores
A correnteza das horas
As trevas sobre as auroras
Os derradeiros amores

Recordo o passado inteiro
E as voltas
Que o mundo dá
Meu limão
Meu limoeiro
Meu pé de jacarandá
E aquele ao léu do destino
Que inspirou tanto louvor
Cajueiro pequenino
Carregadinho de flor

Passa o tempo
E eu fico mudo
Ontem ainda a ciranda
Vida à toa
A trova branda
Agora envolvendo tudo

O vale nativo
Os combros
Várzea
Montanha
Leveza
Essa poeira de escombros
De que se nutre 
A tristeza

Velho
Recordo o menino
Que resta de mim
Sei lá
Cajueiro pequenino
Meu pé de jacarandá

21 de nov. de 2017

Escrevendo um currículo :: Wisława Szymborska

O que é preciso?

É preciso fazer um requerimento

e ao requerimento anexar um currículo.



O currículo tem que ser curto

mesmo que a vida seja longa.



Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.

Trocam-se as paisagens pelos endereços

e a memória vacilante pelas datas imóveis.



De todos os amores basta o casamento,

e dos filhos só os nascidos.



Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.

Viagens só se for para fora.

Associações a quê, mas sem por quê.

Distinções sem a razão.



Escreva como se nunca falasse consigo

e se mantivesse à distância.



Passe ao largo de cães, gatos e pássaros,

de trastes empoeirados, amigos e sonhos.



Antes o preço que o valor

e o título que o conteúdo.

Antes o número do sapato que aonde vai,

esse por quem você se passa.



Acrescente uma foto com a orelha de fora.

O que conta é o seu formato, não o que se ouve.

O que se ouve?

O matraquear das máquinas picotando o papel.



Tradução: Regina Przybycien


* * *

What must you do?

You must submit an application

and enclose a Curriculum Vitae.



Regardless of how long your life is,

the Curriculum Vitae should be short.



Be concise, select facts.

Change landscapes into addresses

and vague memories into fixed dates.



Of all your loves, mention only the marital,

and of the children, only those who were born.



It's more important who knows you

than whom you know.

Travels – only if abroad.

Affiliations – to what, not why.

Awards – but not for what.



Write as if you never talked with yourself,

as if you looked at yourself from afar.



Omit dogs, cats, and birds,

mementos, friends, dreams.



State price rather than value,

title rather than content.

Shoe size, not where one is going,

the one you are supposed to be.



Enclose a photo with one ear showing.

What counts is its shape, not what it hears.



What does it hear?

The clatter of machinery that shreds paper.



Translation: Graźyna Drabik and Austin Flint



* * *


Pisanie życiorysu



Co trzeba?

Trzeba napisać podanie,

a do podania dołączyć życiorys.



Bez względu na długość życia

życiorys powinien być krótki.



Obowiązuje zwięzłość i selekcja faktów.

Zamiana krajobrazów na adresy

i chwiejnych wspomnień w nieruchome daty.



Z wszystkich miłości starczy ślubna,

a z dzieci tylko urodzone.



Ważniejsze, kto cię zna, niż kogo znasz.

Podróże tylko jeśli zagraniczne.

Przynależność do czego, ale nie dlaczego.

Odznaczenia bez za co.



Pisz tak, jakbyś z sobą nigdy nie rozmawiał

i omijał z daleka.



Pomiń milczeniem psy, koty i ptaki,

pamiątkowe rupiecie, przyjaciół i sny.



Raczej cena niż wartość

i tytuł niż treść.

Raczej już numer butów, niż dokąd on idzie,

ten za kogo uchodzisz.



Do tego fotografia z odsłoniętym uchem.

Liczy się jego kształt, nie to, co słychać.

Co słychać?

Łomot maszyn, które mielą papier

SÃO JOÃO DA CRUZ :: Murilo Mendes

Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo.
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.
Mas
Viver consumido da sua graça.
Obedecer a esse fogo frio
Que se resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo.
Não temer sua perda em noite obscura.
E, do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziado:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.

 Poesia Completa e Prosa, 1994.

20 de nov. de 2017

Elas podem ser ensinadas a amar :: Nelson Mandela

Ismael Nery

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...