Sebastião Salgado
Aqui vai o cardápio daquelas sobremesas: farinha de milho ou de mandioca, com açúcar cristal e leite no prato fundo. Bacia de frutos verdes e travos, colhidos no lote vago. Mandioca cozida servida ao melado de cana. Banana-da-terra em tiras ou rodelas, pulverizadas com canela.
Ao homem enfastiado, nem tanta falta lhe faz o menino como a fome do menino. Ele quer desesperadamente essa fome. Fome roendo caroço de pequi, de cajamanga até os perigosíssimos espinhos. Fome tirando fiapo de manga-espada do dente, fome ciscando o fundo da panela já sem pipoca alguma, peruá.
Fome descolando raspas de angu da caçarola, fome fritando aparas de pastéis em mentirinhas inofensivas para dar mistura ao arroz com feijão. Fome de comer dobradinha, fome de bucho de boi, esse miolo intestino. Fome de bola, de mingau de aveia, de viver, de sair correndo, fome de mingau de Maizena, de biscoito de polvilho ou quebra-quebra, fome, fome, fome.
Hoje o homem sem fome sentiu fome daquela fome do menino que foi. Fome de fim de tarde trucidando bolos e bolinhos de fubá, de milho, de chuva. Fome de mané-pelado no tabuleiro. Fome de pão dormido virando torradas pela manhã, farofa de pão, rabanada. Fome de picolezinhos de cubo feitos de limonada muito doce, congelada, atravessados na forma de palitos Gina. Fome de moer gelo pra raspadinha de framboesa.
Fome de biscoito duro molhado no café. Fome de descascar com canivete e chupar laranja-lima de baciada no pé da escada. Fome de arriscar a vida cascando cana de açúcar até reduzi-las no facão a tronquinhos de gomos brancos enxaguando molares firmes. Fome de doce de goiaba, marmelada, bananada na lata redonda da Cica, fome de doce de casca de mamão, laranja, jabuticaba. Ah, que fome, que fome linda.
Fome de paçoca de carne no pilão, fome de paçoca de amendoim com farinha de milho colada no céu da boca. Fome de comer abacate na casca com açúcar, fome de guardar o chiclete mascado sobre o dorso da mão durante o almoço enquanto mata a fome, para voltar a ele depois da sobremesa.
Fome de raspar com os dentes de baixo a tira da casca tirada do abacaxi pro doce de amor aos pedaços, fome de comer o talo do abacaxi, fome até da afta que dava fazer isso, fome de comer o amor inteiro. Fome de canjica e de canjiquinha, fome de disputar o osso da costelinha com o cachorro. Fome de cachorro, de milho cozido de volta à palha, de ovo cozido, de ovo mexido, de tudo mexido, na formidável farofa da vida, quando se tem essa fome ávida de vida.
Enfarado de tudo, o homem nunca mais se sentiu tão faminto como o menino ele. Hoje, no entanto, feliz descobriu que ainda possui uma fome. Está esfaimado do tempo em que o homem era menino e tinha aquela fome de menino famélico que o homem deixou de ser.
Hoje lhe deu fome disso, fome de não se sentir mais assim, repleto de falta de fome, insatisfatoriamente farto. Hoje lhe bateu a fome de ter aquela fome. A fome mais faminta, não, a fome mais voraz e insaciável, a fome que o erguia para o mundo desde aquele ele, esfomeado menino arado.