13 de mai. de 2024

A fome e a vontade de comer :: Marcílio Godoi

                  Sebastião Salgado 


Aqui vai o cardápio daquelas sobremesas: farinha de milho ou de mandioca, com açúcar cristal e leite no prato fundo. Bacia de frutos verdes e travos, colhidos no lote vago. Mandioca cozida servida ao melado de cana. Banana-da-terra em tiras ou rodelas, pulverizadas com canela.


Ao homem enfastiado, nem tanta falta lhe faz o menino como a fome do menino. Ele quer desesperadamente essa fome. Fome roendo caroço de pequi, de cajamanga até os perigosíssimos espinhos. Fome tirando fiapo de manga-espada do dente, fome ciscando o fundo da panela já sem pipoca alguma, peruá. 


Fome descolando raspas de angu da caçarola, fome fritando aparas de pastéis em mentirinhas inofensivas para dar mistura ao arroz com feijão. Fome de comer dobradinha, fome de bucho de boi, esse miolo intestino. Fome de bola, de mingau de aveia, de viver, de sair correndo, fome de mingau de Maizena, de biscoito de polvilho ou quebra-quebra, fome, fome, fome. 


Hoje o homem sem fome sentiu fome daquela fome do menino que foi. Fome de fim de tarde trucidando bolos e bolinhos de fubá, de milho, de chuva. Fome de mané-pelado no tabuleiro. Fome de pão dormido virando torradas pela manhã, farofa de pão, rabanada. Fome de picolezinhos de cubo feitos de limonada muito doce, congelada, atravessados na forma de palitos Gina. Fome de moer gelo pra raspadinha de framboesa.


Fome de biscoito duro molhado no café. Fome de descascar com canivete e chupar laranja-lima de baciada no pé da escada. Fome de arriscar a vida cascando cana de açúcar até reduzi-las no facão a tronquinhos de gomos brancos enxaguando molares firmes. Fome de doce de goiaba, marmelada, bananada na lata redonda da Cica, fome de doce de casca de mamão, laranja, jabuticaba. Ah, que fome, que fome linda.


Fome de paçoca de carne no pilão, fome de paçoca de amendoim com farinha de milho colada no céu da boca. Fome de comer abacate na casca com açúcar, fome de guardar o chiclete mascado sobre o dorso da mão durante o almoço enquanto mata a fome, para voltar a ele depois da sobremesa.


Fome de raspar com os dentes de baixo a tira da casca tirada do abacaxi pro doce de amor aos pedaços, fome de comer o talo do abacaxi, fome até da afta que dava fazer isso, fome de comer o amor inteiro. Fome de canjica e de canjiquinha, fome de disputar o osso da costelinha com o cachorro. Fome de cachorro, de milho cozido de volta à palha, de ovo cozido, de ovo mexido, de tudo mexido, na formidável farofa da vida, quando se tem essa fome ávida de vida.


Enfarado de tudo, o homem nunca mais se sentiu tão faminto como o menino ele. Hoje, no entanto, feliz descobriu que ainda possui uma fome. Está esfaimado do tempo em que o homem era menino e tinha aquela fome de menino famélico que o homem deixou de ser. 


Hoje lhe deu fome disso, fome de não se sentir mais assim, repleto de falta de fome, insatisfatoriamente farto. Hoje lhe bateu a fome de ter aquela fome. A fome mais faminta, não, a fome mais voraz e insaciável, a fome que o erguia para o mundo desde aquele ele, esfomeado menino arado.

4 de mai. de 2024

Encontros circulares:: Noemi Jaffe

existe uma ideia, partilhada inclusive pela psicanálise, de que "tudo tem um preço". embora aparentemente distante do "não existe almoço grátis", mote corporativo que me apavora, a noção é semelhante. tudo se baseia numa economia das relações, mesmo que, aqui, a palavra economia não esteja relacionada necessariamente a dinheiro, mas a uma lógica de trocas. nesse sentido, atos supostamente gratuitos, como a ajuda desinteressada a um próximo, seriam avaliados como interesse vaidoso, conquista de amor-próprio ou admiração do outro e até mesmo a "compra" de um bem imaterial.

não posso concordar. me parece que essa visão parte, a posteriori, de um pensamento já lastreado pelo economismo ou economicismo e não o contrário. se conseguirmos transcender para trás, involuirmos e não, como sempre, irmos necessariamente para a frente e para cima, mas para trás e para baixo, para os lados e para o entorno, descobriremos, acredito, a possibilidade de relações ao largo da ideia de retribuição, assim como dois macacos tirando piolhos um do outro. talvez ações brincadêiricas, jogantes, ridentes, desinteressadamente interessantes, partícipes de encontros circulares em que as trocas são dinâmicas e não devolutivas. 

não significados, mas significantes que se relacionam quase autonomamente,

pensando.

Noemi Jaffe 

15 de abr. de 2024

O PROBLEMA DE SER NORTE, Filipa Leal

Era um verso com árvores à volta.

Tinha o problema de ser norte

e dia e tão contrário à natureza.

Era um verso sem ar livre

mas com árvores em círculo

e eu no centro, em baixo, nas escadas

de pedra, cheia de verde e de frio

e a pensar que continuo a não entender

a natureza contrária aos meus olhos.

Pois se as árvores são a única

paisagem deste verso, a toda a volta,

e eu no fundo, em baixo, nas escadas

de pedra ainda, se voltando-me, morrendo,

serão elas ainda a única paisagem deste verso,

como poderei amá-las

sem que


um

raro

silêncio ainda


me interrompa?


Filipa Leal, O Problema de Ser Norte, Deriva Editores

23 de mar. de 2024

Oleismos






 

O CAVALO NO VALE :: Hilda Hilst

 steve mitchell 

O cavalo no vale.

E mais além

O meu olhar mais verde do que o vale

E claro de esperança

E querer bem.


O vento no capim.

O vermelho cansado deste outono.

Os roseirais em mim.

E tudo me parece

Tão tranquilo e leve.


E com muito cuidado

Como quem tem na mão a flor e o quadro


Espero que a paisagem desta tarde


Adormeça

O cavalo no vale

O vento no capim

Os roseirais em mim.


  De Ode Fragmentária (1961)

18 de mar. de 2024

Se ao menos a morte :: Filipa Leal

Ela morria tantas vezes

em tiroteios à porta de casa

que já não sabia morrer para sempre

assim

de uma vez só.

Se ao menos se marcasse um dia

para a morte, uma hora certa

como no dentista

que apesar de tudo

nos faz esperar

onde apesar de tudo

não sabemos quando será a nossa vez.

Se ao menos a morte tivesse revistas

e gente na sala de espera

não estaríamos tão sós

tão vivos nessa ideia final

nesse desconforto.

Poríamos o nome na lista

quando estivéssemos prontos

sabendo que seria fácil desmarcar

marcar para outro dia

ou simplesmente

não comparecer.

Depois, ficaríamos com a dor,

com o terror

de passar sequer naquela rua

como ela à porta de casa.

Ela que morria tantas vezes

porque morria de medo de morrer.

Filipa Leal

17 de mar. de 2024

Três presentes de fim de ano :: Carlos Drummond de Andrade

Tibérius Drumond 

I


Querida, mando-te

uma tartaruguinha de presente

e principalmente de futuro

pois viverá uma riqueza de anos

e quando eu haja tomado a estígia barca

rumo ao país obscuro

ela te me lembrará no chão do quarto

e te dirá em sua muda língua

que o tempo, o tempo é simples ruga

na carapaça, não no fundo amor.


II


Nem corbeilles nem

letras de câmbio

nem rondós nem

carrão 69

nem festivais

na ilha d’amores

não esperes de mim

terrestres primores.

Dou-te a senha para

o dom imperceptível

que não vem do próximo

não se guarda em cofre

não pesa, não passa

nem sequer tem nome.

Inventa-o se puderes

com fervor e graça.


III


Sempre foi difícil

ah como era difícil escolher

um par de sapatos, um perfume.

Agora então, amor, é impossível.

O mau gosto

e o bom se acasalaram, catrapuz!

Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora

ou tem medo de dizer que é medonho?

E aquele quadro (objeto)? aquela pantalona?

Aquela poesia? Hem? O quê? não ouço

a sua voz entre alto-falantes, não distingo

nenhuma voz nos sons vociferantes...

Desculpe, amor, se meu presente

é meio louco e bobo

e superado:

uns lábios em silêncio

(a música mental)

e uns olhos em recesso

(a infinita paisagem).



Carlos Drummond de Andrade


(1902-1987)

10 de mar. de 2024

DESENHO Cecilia Meirelles

  

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, 

e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. 

E as lágrimas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, 

e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam 


Isso era um lugar de sol e nuvens brancas, 

onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... 

O eco, burlão, de pedra, ia saltando, 

entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. 


Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,

e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,

que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, 

pois a vida completa e bela e terna ali já estava. 


Com a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa! 

E o papagaio como ficava sonolento! 

O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos 

fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo. 


Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, 

e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. 

Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes 

moravam nos jardins sussurrantes e eternos. 


E minha avó cantava e cosia. Cantava 

canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. 

E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos

e palavras de amor em minha roupa escritas. 


Minha vida começa num vergel colorido, 

por onde as noites eram só de luar e estrelas. 

Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras 

a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira. 


CECÍLIA MEIRELES 

in Mar Absoluto, 1945


6 de mar. de 2024

Um índio:: Caetano Veloso

Ricardo Stuckert 
 

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante

Depois de exterminada a última nação indígena

E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida

Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor

Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico

Do objeto-sim resplandecente descerá o índio

E as coisas que eu sei que ele dirá, fará

Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio


Compositor: Caetano Emmanuel Viana Teles Veloso

4 de mar. de 2024

Por vezes, não raro... Eucanãa Ferraz

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.


No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.


Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.


Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.


Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.


in Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...