Outro Natal e aquele mesmo dia abafado, comprido, aquele chove-não-chove lá fora e na casa esse dentro ruído de antigas mobílias e paredes se arrastando.
Lentas correntes de homens e mulheres lembram-nos dos que já se foram e que agora voltam, trazidos nesse fio de castanhas moídas entredentes e uma tristeza amiga, doce e amarga que emenda todos os natais.
Outro Natal e o calor de aromas assados no forno-fogo consolador da formidável quitanda dos livros-mãe. Água na boca de avós a nos irrigar os molares com aquele vinho barato de garrafão novo-envelhecido, um pouco seco, inevitavelmente doce, mas oficial, tão íntimo, como aquela guirlanda instável-desbotada, histórica, sempre dependurada na porta, à altura de nossos olhos úmidos e empoeirados.
Outro Natal e a azáfama infantil pelos corredores, pais na montagem de autoramas e quebra-cabeças. E as olheiras de tantos natais irmanadas por cima dos óculos a um tio muito amoroso e bêbado pelo corredor, lutando com bravura, meio que rodando em falso, contra a obsequiosa embriaguês da solidão meio silente meio desesperada que grita em cada um de nós sobretudo ao final da noite de todo Natal.
Outro Natal e essa carreira de tantos natais enfileirados surge outra vez no peito como se a festa fosse toda feita em nome da busca de uma lembrança perdida, ainda vívida, talvez mal vivida, mal redimida, talvez nunca vivida, mas ardendo, levemente ressentida, pois que o Natal insiste em ser esse registro reticente, o da memória do tempo em que havia natais.
Outro Natal e sempre nos aparece a chance remota de nos vermos mais de perto e entender que por detrás de tudo o que nos incomoda no outro está o que nele não enxergamos, o seu avesso e a história secreta que o explica direitinho, mas que nunca saberemos ao certo.
Quem tá com a coisa é que sabe, disse o velho em um desses natais. Sendo apenas o que deu conta de ser. Que imenso. E o nome disso era perdão, mas sempre e inutilmente insistimos em dizer Natal. Feliz Natal.
Outro Natal e acende mais uma vez a chama daquela saudade inconfessável, boa e ao mesmo tempo estranha como a fruta cristalizada naquele bolo de oxímoros, meio ruim, meio bom, e que vamos comer sorrindo entre rabanadas no fim-de-tarde do vinte e cinco.
Sob a sombra do tempo, esse teto, esse céu de celofane, essa palha, com uma estrela meio torta, meio cometa cruzando a manjedoura.
Outro Natal e algum detalhe dourado escondido, algum algum aroma de incenso não sei onde, um não-sei-o-que, que não havíamos notado no paninho de mesa bordado, no prato antigo, num sobrinho, como cresceu!
Outro Natal e aquele mesmo aniversariante de gesso, tão menino nos dizendo que todo Natal será sempre assim, a tentativa de ser o mesmo, repetidamente, contra a busca desesperada de ser um outro, inutilmente.