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31 de jul. de 2014

Ouro e púrpura :: Mariana Ianelli


Agora um país de ouro e púrpura,
Outono de rosa mosqueta e de maçãs –
Não o paraíso que sonhamos uma vez
Apenas para inventar boas memórias –

Não é mais um êxtase de nossa lavra
Nem o disfarce de feridas bem guardadas
Por receio de munir com as nossas faltas
Um inimigo no sentimento do amante.

Não é mais deixar para amanhã
E amanhã sempre a mentira deslumbrante
De a um mínimo gesto de distância
Poder tocar o ideal de uma paisagem.

Já se foram todos os nossos truques,
Abandonados num tremendo acidente,
Numa tormenta, num incêndio, numa alma
Que foi picada em seu sono e despertou.

Agora um país de ouro e púrpura
E nós despojados, tontos de ar puro,
Recém-maduros para o amor sereno,
Nosso outono de rosa mosqueta e de maçãs.

7 de jul. de 2014

Semelhança :: Mariana Ianelli

Ferdinand Hodler, 1898
– E se a tua mudez
For a superfície de um lago
Que nada recusa refletir

E se eu ali mergulhado
Feito um cego 
Compreender
Que o rosto que me falta ver
É este rosto 
Que sempre te ofereço
Mas que frente a frente
Jamais encontrei

E se o pranto for a verdade
Do canto

O assombro de um horizonte
Tão brando
Que desde longe me obriga
A trazer à tona, um dia,
O teu rosto refletido –

1 de set. de 2013

Canto de Ofício :: Mariana Ianelli

Degas 
A cada dia, por ser hoje,
Eu te agradeço.
Por esse quarto à meia luz
E outros mundos,
Por esse gosto de amêndoa
E outros prazeres.

Quem quer que sejas tu
E onde estiveres,
Sob qualquer face
Que me apareças,
Assim é.

Pela incerteza essencial
Sobre mim mesma,
E estas palavras
Desde há pouco sem proveito,
Entranha, mistério, vereda
- Eu agradeço.

A cada noite inaugural
E derradeira,
Que me sustém
Não menos que o suficiente,
Bendito o fruto, o sal, o chão
E este silêncio.

Fundo de ravina o meu lugar,
Se já não creio.
Alto de um monte, se resisto.
E descrendo, resistindo,
Eu agradeço.

Que me possua o antro
Dos meus edifícios,
Como a pedra ordinária
É possuída
Por sóis e luas
Em seu tempo de maré.

Que eu me refaça
De quanto tenha desistido
Como a dizimação de um povo
No testemunho dos vivos.

E que eu envelheça
Par a par com esta casa,
Debaixo do musgo e da poeira,
O corpo palpitando ainda,
Mas num insensível batimento.

Por tudo o que se eleva
Numa onda
Logo se quebrando
Junto à espuma,
Pelo que no adeus se perpetua,
Sim, louvado seja.

Embora muito fique por saber
Das letras e dos números,
E tanto por dizer
Sobre o mal e a loucura,
Embora o rosto penso,
O grito, os pés inúteis.

Quão breve o momento
E quão vasto seu milagre.
Os favores da pele,
O céu de um poema,
A benção do pão e da água.

A benção, apesar
Do irremediável olho cego,
Das almas perseguidas
E do aborto solitário.

Porque aqui se chega,
A este dia e a esta luz
E é tão raro aceitá-lo.
Porque daqui se vai.

O adágio,
A flor do ourives,
O vermelho da China,
Um giro de bailarina,
Graças a ti, todas as artes.

Por esse vinho
E seus quinze outonos.
Pelo descanso da terra.
Por essa terra.

13 de jul. de 2013

Eu quis o mar :: Mariana Ianelli

Eu quis o mar, o porto de águas mornas,
Um desvão onde guardar minha ansiedade.
Larguei-me na amplitude da corrente
Que tragava as embarcações desorientadas.
Na largura da noite altaneira, o meu intuito:
Depositei em uma estrela miúda o segredo da viagem.

Poema do livro Passagens, ed. Iluminuras, 2003

Leitura das Cartas :: Mariana Ianelli

Te decidirás
Entre duas Américas
Num breve recolher de âncoras.
E será sem volta a tua decisão.

Terás espírito,
Impérios e dotes
E perderás um a um todos eles.
Tua fortuna desperdiçada em vão.

Vês aquela menina?
Alheio à sorte, não podes vê-la:
Falta-te o conhecimento do oculto.
Essa criança será tua mulher daqui a vinte anos.

Nenhum pudor em tua alegria
(Só volúpia e picardia)
No momento oportuno de o teu rosto
Converter toda beleza em mentira.

Tornarás à casa da ladeira
E o futuro será mais do que destruição.
Tal como antigamente estarão lá
As palmeiras, o lusco-fusco e o uivo dos cães.

Sentirás uma vertigem,
Mas não seu estranho sinal.
Outra vertigem no exílio da madrugada
E o pesadelo do inconsciente adormecerá a tua razão.

Saberás estar sozinho,
Coberto de idéias miraculosas.
Teu amor pela astronomia
Será maior do que o teu amor pelos homens.

Não questionarás a alegoria da vida
Até os teus quarenta e cinco,
Quando te descobrirás um místico
E num desvario este poema será escrito.