Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
3 de nov. de 2023
1 de nov. de 2023
Meu ideal seria escrever ... Rubem Braga
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
BRAGA, R., A Traição das Elegantes. Editora Sabia, 1967.
Momento num café :: Manuel Bandeira
29 de out. de 2023
Betsy: Rubem Fonseca
Lorena Salido
Betsy esperou a volta do homem para morrer.
Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água.
O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta.
A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.
De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste.
Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.
Rubem Fonseca. Histórias de amor. Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
23 de out. de 2023
Fim e Começo :: Wislawa Szymborska
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.
Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.
Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.
A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.
As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.
Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.
Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.
Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.
Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
18 de out. de 2023
3 de out. de 2023
Banhos de mar :: Clarice Lispector
Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.
Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?
De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamo-nos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.
Saíamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.
Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: “Olhe um porco de verdade!” gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras de minha família, que de vez em quando me dizia rindo: “Olhe um porco de verdade.”
Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.
Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.
No bonde mesmo começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava.
O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.
Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.
O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.
Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.
Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo.
Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura.
Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.
A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?
Nunca mais.
Nunca.
2 de out. de 2023
Eduardo Galeano :: O Medo Global
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.
Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.
Quem não tem medo da fome, tem medo de comida.
Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de serem atropelados.
A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.
Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.
É o tempo do medo.
Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.
Medo dos ladrões, medo da polícia.
Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para despertar.
Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver.
in: 𝘋𝘦 𝘱𝘦𝘳𝘯𝘢𝘴 𝘱𝘳𝘰 𝘢𝘳: 𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘭𝘢 𝘥𝘰 𝘮𝘶𝘯𝘥𝘰 𝘢𝘰 𝘢𝘷𝘦𝘴𝘴o.
23 de set. de 2023
Poema antinaturalista :: Marcílio Godoi
Vilhelm Hammershoi
O antropólogo me assustou, dizendo
que ao depararmos com uma imagem
esta também nos espreita
ansiando por nos decifrar.
Há muitos modos de ver, é certo
mas a consciência de também ser flagrado
inquirido pela história, pelo tempo, pelo outro
pela arte, pelas coisas que vemos
fez girar, afetiva e tautologicamente
outras lentes também por aqui.
Como as que garantem
que uma canção pode me cantar
que um fruto me devora
ou que os lugares é que me visitam.
Que este poema, de algum modo
num espelho me lê por inteiro
e também me escreveu.
E que eu só existo, amor
porque me olhas, teu.
18 de set. de 2023
Berta Piñán – Duas Garças
Chegaram no sábado. Vimo-las
cedo porque nesse dia chegou
também o frio e passamos
a manhã falando do tempo.
São duas, e me pergunto que
destino imprevisto as trouxe
a esta árvore precisa, a este lugar
exato em que o tempo delas
cruza, como um sinal confuso,
nosso tempo.
De tarde falamos sobre elas:
“Esta espera, imóvel, paciente – dizes -,
traça não sei que estranha, antiga imagem
da vida”.
Depois ficamos em silêncio, observando,
espiando sua perfeita quietude
sobre as águas que atravessam
o inverno, e assim,
por um momento resumem
para nós a
contemplação
do mundo: este rio, estas árvores,
o céu de outono, o calor,
o frio.
Tradução.: Nelson Santander
......
Llegaron el sábado. Las vimos
temprano porque ese día comenzó
también el frío y echamos
la mañana charlando del tiempo.
Son dos, y me pregunto qué
destino imprevisto las trae
a este árbol preciso, a este lugar
exacto en que su tiempo
atraviesa, como un signo confuso,
nuestro tiempo.
Por la tarde hablamos de ellas:
“Esta espera suya, inmóvil, terca – dices -,
no sé qué extraña, antigua imagen
traza de la vida”.
Después quedamos en silencio, mirando,
espiando su perfecta quietud
sobre las aguas que pasan
del invierno, y entonces,
por un momento, resumen
para nosotras la
contemplación
del mundo: este río, estos árboles,
el cielo de otoño, el calor,
el frío.
14 de set. de 2023
Sinais 2020, Júlia Rocha Instruções para pintores & poetas :: Lawrence Ferlinghetti
Perguntei a cem pintores e a cem poetas
como pintar a luz do sol
no rosto da vida
As respostas foram ambíguas e ingênuas
como se estivessem guardando segredos comerciais
Entretanto, me parece que
tudo que você tem que fazer
é criar o mundo inteiro
e toda a humanidade
como uma espécie de obra de arte
uma obra de arte site-specific
um projeto de arte do deus da luz
toda a Terra e tudo o que há nela
pintado com luz
E a primeira coisa a se fazer
é pintar algo pós-moderno
E, depois, pintar a si mesmo
em cores verdadeiras
em cores primárias
como vocês as vê
(sem cal)
pinte-se como você se vê
sem maquiagem
sem máscaras
Depois, pinte suas pessoas e animais favoritos
com seu pincel cheio de luz
E certifique-se de que a perspectiva está correta
E não finja
pois uma linha falsa leva a outra
E então pinte altas colinas
quando tocadas pela primeira vez pelo sol
em uma manhã de outono
Com a espátula
coloque
as folhas amarelas de cádmio
as folhas ocres
as folhas de vermelhão
de um outono da Nova Inglaterra
E pinte a luz fantasma das noites de verão
e a luz do sol da meia-noite
que é a luz da lua
E não pinte as sombras feitas pela luz
pois sem chiaroscuro terá imagens superficiais
Então pinte também todos os cantos escuros
de todo o mundo
todos os lugares escondidos e corações e mentes
que a luz jamais alcança
todas as cavernas de ignorância e medo
a fossa do desespero
as lamas do desânimo
e escreva bem claramente
“Deixai todo desespero, vós que entrais”
E não se esqueça de pintar
todos aqueles que viveram suas vidas
como portadores de luz
Pinte seus olhos
e os olhos de cada animal
e os olhos de belas mulheres
mais conhecidas pela perfeição de seus seios
e os olhos de homens e mulheres
conhecidos apenas pela luz de suas mentes
Pinte a luz de seus olhos
a luz do riso iluminado pelo sol
a canção dos olhos
a canção dos pássaros em voo
E lembre-se de que a luz é interior
em qualquer lugar
e você deve pintar de dentro
Comece com pureza
com branco puro
o branco puro do gesso
o branco puro do cádmio branco
o branco puro do flake white
a tela pura e virgem
a vida pura, início de todos nós
Turner pintou a luz do sol
com têmpera a ovo
(que se mostrou instável)
e Van Gogh fez o mesmo com loucura
e sangue de sua orelha
(também instável)
e os impressionistas também
por jamais usar preto
e os expressionistas abstratos também
com pintura de casa branca
Mas você pode fazer isso com o pigmento puro
(se conseguir descobrir a fórmula)
de sua própria e verdadeira luz
mas antes de dar a primeira pincelada
na tela virgem
lembre de sua fragilidade
a extrema fragilidade da vida
e lembre sua inocência
sua inocência original
antes da primeira pincelada
Ou talvez nem comece
E deixe a luz atravessar
a luz interna da tela
a luz interna dos modelos
nos estudos da vida
a luz interior de todos
Deixe tudo fluir
como um pentimento
a luz pintada
a vida pintada
inúmeras vezes
Deixe tudo emergir
a imagem pintada
da vida primitiva na terra
E quando terminar sua pintura
afaste-se atônito
afaste-se e observe
a vida que criou na terra
a vida iluminada na terra
você criou
um admirável mundo novo
......
Instructions to Painters & Poets
I asked a hundred painters and a hundred poets
how to paint sunlight
on the face of life
Their answers were ambiguous and ingenuous
as if they were all guarding trade secrets
Whereas it seems to me
all you have to do
is conceive of the whole world
and all humanity
as a kind of art work
a site-specific art work
an art project of the god of light
the whole earth and all that’s in it
to be painted with light
And the first thing you have to do
is paint out postmodern painting
And the next thing is to paint yourself
in your true colors
in primary colors
as you see them
(without whitewash)
paint yourself as you see yourself
without make-up
without masks
Then paint your favorite people and animals
with your brush loaded with light
And be sure you get the perspective right
and don’t fake it
because one false line leads to another
And then paint the high hills
when the sun first strikes them
on an autumn morning
With your palette knife
lay it on
the cadmium yellow leaves
the ochre leaves
the vermillion leaves
of a New England autumn
And paint the ghost light of summer nights
and the light of the midnight sun
which is moon light
And don’t paint out the shadows made by light
for without chiaroscuro you’ll have shallow pictures
So paint all the dark corners too
everywhere in the world
all the hidden places and minds and hearts
which light never reaches
all the caves of ignorance and fear
the pits of despair
the sloughs of despond
and write plain upon them
“Abandon all despair, ye who enter here”
And don’t forget to paint
all those who lived their lives
as bearers of light
Paint their eyes
and the eyes of every animal
and the eyes of beautiful women
known best for the perfection of their breasts
and the eyes of men and women
known only for the light of their minds
Paint the light of their eyes
the light of sunlit laughter
the song of eyes
the song of birds in flight
And remember that the light is within
if it is anywhere
and you must paint from the inside
Start with purity
with pure white
the pure white of gesso
the pure white of cadmium white
the pure white of flake white
the pure virgin canvas
the pure life we all begin with
Turner painted sunlight
with egg tempera
(which proved unstable)
and Van Gogh did it with madness
and the blood of his ear
(also unstable)
and the Impressionists did it
by never using black
and the Abstract Expressionists did it
with white house paint
But you can do it with the pure pigment
(if you can figure out the formula)
of your own true light
But before you striek the first blow
on the virgin canvas
remember its fragility
life’s extreme fragility
and remember its innocence
its original innocence
before you strike the first blow
Or perhaps never strike it
And let the light come through
the inner light of the canvas
the inner light of the models posed
in the life study
the inner light of everyone
Let it all come through
like a pentimento
the light that’s been painted over
the life that’s been painted over
so many times
Let it all surge to the surface
the painted-over image
of primal life on earth
And when you’ve finished your painting
stand back astonished
stand back and observe
the life on earth that you’ve created
the lighted life on earth
that you’ve created
a new brave world
7 de set. de 2023
A cada cem pessoas :: Wisława Szymborska
A cada cem pessoas:
sabem de tudo e muito melhor do que os outros:
– cinquenta e duas.
ficam inseguras a cada passo:
– quase todas as outras.
estão prontas a ajudar
desde é claro que isso não lhes tome muito tempo:
– quarenta e nove, o que já não é mau.
são sempre boas porque incapazes de ser de outro modo:
– quatro… vá lá, talvez cinco.
estão prontas a admirar sem inveja:
– dezoito.
são induzidas ao erro
por uma juventude que passa tão depressa:
– umas sessenta.
com quem não se pode brincar:
– quarenta e quatro.
vivem angustiadas em relação a alguém ou a qualquer coisa:
– setenta e sete.
são dotadíssimas para a felicidade:
– no máximo vinte e tal.
inofensivas quando sozinhas
mas selvagens quando em multidão:
– isso, o melhor é não tentar saber nem aproximadamente.
não pedem nada da vida exceto coisas:
– trinta, mas preferia estar enganada.
encurvadas, sofridas,
sem uma lanterna que lhes ilumine as trevas:
– cedo ou tarde, oitenta e três.
justas:
– pelo menos trinta e cinco, e lamba os beiços.
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender:
– três.
dignas de compaixão:
– noventa e nove.
mortais:
– cem entre cem,
número que, até momento, não é possível alterar.
Wisława Szymborska, in Instante, Relógio D’Água, 2006, pp. 63-65.
4 de set. de 2023
MOÇAS DAS DOCAS :: 20 Setembro 1926 (Moçambique) -04 Dezembro 2002 (Cascais) Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares
Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trançadas,
nossos corpos submissos e escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite.
Viemos ...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer espáduas todo o dia vergadas
sobre sedas que outras exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança.
(Excerto)
2 de set. de 2023
Manacá-de-jardim ou manacá-de-cheiro (Brunfelsia uniflora)
É uma árvore de folhas pequenas e permanentes, de crescimento de velocidade média e que pode atingir cerca de 3 metros de altura, com 2 metros de diâmetro da copa arredondada. A floração decorre entre setembro a março e produz flores brancas e lilases. A frutificação é do tipo cápsula. A propagação é por mergulhia e não suporta transplante.
Esta espécie é muito utilizada como ornamento, pela sua beleza e perfume. Durante todo o ano é possível ver na sua proximidade a borboleta-do-manacá, que deposita os ovos apenas nas folhas dessa planta, que é o único alimento de suas larvas.
fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...
-
Tem de haver mais Agora o verão se foi E poderia nunca ter vindo. No sol está quente. Mas tem de haver mais. Tudo aconteceu, Tu...
-
A ilha da Madeira foi descoberta no séc. XV e julga-se que os bordados começaram desde logo a ser produzidos pel...