Dois pedacinhos de mar
duas pedrinhas
de água
duas pedrinhas
de nada
teus olhos fazem existir o mar
In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
Dois pedacinhos de mar
duas pedrinhas
de água
duas pedrinhas
de nada
teus olhos fazem existir o mar
In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
Sou um péssimo público para a minha memória.
Ela quer que eu ouça sua voz incessantemente,
mas eu me agito, tusso
ouço e não ouço,
saio, volto e saio de novo.
Ela requer todo o meu tempo e atenção.
Quando durmo, é fácil para ela.
De dia já nem tanto, o que a magoa.
Me propõe zelosamente velhas cartas, fotos,
revolve fatos importantes e desimportantes,
devolve a vista para paisagens ignoradas,
e povoa-as com os meus mortos.
Nos seus relatos sou sempre mais jovem.
Isso é bom, mas por que sempre essa história?
Cada espelho me dá outras notícias.
Irrita-se quando dou de ombros.
E então se vinga remexendo todos os meus erros,
graves, mas que já não pesam.
Me olha nos olhos, espera minha reação.
Por fim me consola; podia ter sido pior.
Quer que agora eu viva só para ela e com ela.
De preferencia num quarto escuro e fechado,
mas nos meus planos ainda figuram o sol presente,
as nuvens atuais, as estradas correntes.
Às vezes fico farta de sua companhia.
Proponho nos separarmos. De hoje para sempre.
Então sorri com complacência,
sabe que também para mim seria uma condenação.
Trad.: Regina Przybycien
Nunca persegui a glória
nem preservar na memória
dos homens minha canção:
eu amo os mundos sutis,
sem gravidade e gentis
como bolhas de sabão.
É bom vê-los se pintando
de sol e pasto, voando
ao céu azul, tremulando
e de repente estourando.
........................
Nunca perseguí la gloria
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
yo amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
subitamente y quebrarse.
In:_____. Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1983.
Uma garota, lá na praia,
Acompanhando o pôr do sol,
Com olhos rasos d’água solta
Suspiros fundos e alguns ais.
Ora, garota, paciência!
É sempre a mesma velha história:
Agora o astro sai de cena –
De manhãzinha, está de volta.
.....................................
Das Fräulein stand am Meere
Und seufzte lang und bang,
Es rührte sie so sehre
Der Sonnenuntergang.
Mein Fräulein! seyn Sie munter,
Das ist ein altes Stück;
Hier vorne geht sie unter
Und kehrt von hinten zurück.
In:_____. Heine, heim? Poeta dos contrários. Org. e trad. por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011.
Van Gogh
Eles vivem e morrem por aí –
Numa estrangeira viela
A vida com violência os atropela
E se põe a fugir.
Viveram e morreram e lutaram duro
E criaram suas crianças
E aí na mais distante deslembrança
Terminam seu percurso.
..........................
Die Vergessenen
Sie leben und sterben irgendwo
An einem fremden Steg
Das Leben geht vorüber roh
Und über sie hinweg.
Sie lebten und starben und rangen schwer
Und zogen Kinder auf
Und dann in ferner Vergessenheit hehr
Sie enden ihren Lauf.
"Die Vergessenen" / "Os deslembrados". In:_____. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.
Tudo isso há de começar mais uma vez
o livro que eu levava pra todo lado e lia
vai ser lido por outro alguém. Alguém há de aprender
a contar até dez pela primeira vez, depois até cem
e alguém há de aprender os dias da semana e assim há de saber
que a sexta-feira é o melhor e que o domingo é o pior dia da semana
porque domingo é o dia em que só fazemos esperar pela segunda-feira
e com a segunda-feira até a quinta-feira é impossível contar
se a gente trabalha o dia inteiro e fica sentado numa cadeira de noite
Porém, mesmo assim tudo isso há de começar mais um vez:
alguém há de sentar na escadaria sob essa luz sarapintada
tentando escrever um poeminha num pedaço de papel
e alguém há de aprender a pedalar,
e alguém há de ler que o universo encontra-se em expansão
e sobre sóis que só sabem seguir explodindo
e alguém há de estudar hebraico antigo e ornitologia
e passear à noitinha com as mãos no bolso do casaco
sabendo que há de morrer, mas não já já
antes outro alguém há de se apaixonar por ele, tomara,
e depois alguém há de deixá-lo, mas não já já
pois tudo isso há de começar mais uma vez: alguém há de ler
Pablo Neruda pela primeira vez, e Osip Mandelstam
e Bertholt Brecht, alguém há de ler Wisława Szymborska
e alguém há de descobrir quantos somos nós todos que vivemos nesse mundo
e de repente há de entender que cada um de nós é um indivíduo
mesmo que não haja individualismo suficiente para todos
e mesmo que não seja verdade que todas as pessoas
têm o mesmo valor, alguém há de aprender isso e crer nisso
até que não seja mais possível seguir crendo nisso
pois isso não parece ser verdade
pois isso não parece possível de se realizar
mesmo que não seja possível crer em mais nada além do fato
de a escuridão escalar os vários andares
e de a escuridão um dia chegar aos teus pés
e de tu um dia vadear nela e de ela chegar até as tuas mãos
e gritar na escuridão e beber a escuridão, não por que tens sede
mas porque não há mais nada senão ela, e porque aquela velha
luz sarapintada que não havia era suficiente para todos
não é mesmo? mas tudo isso há de ser repetido por outro alguém
e a luz dispara sem parar cruzando a escuridão
de 300.000 quilômetros e leva menos tempo para te achar do que um gato esquelético
enquanto estás ali parado tentando achar as chaves no bolso do casaco
e tudo o que te acontece acontece creias ou não creias que seja verdade
Nossa porção de noite —
Nossa porção de aurora —
Nossa ausência de amor —
Nossa ausência de agrura —
Uma estrela, outra estrela
Que se extravia!
Uma névoa, outra névoa,
Depois – o Dia!
...........................
Our share of night to bear –
Our share of morning –
Our blank in bliss to fill
Our blank in scorning –
Here a star, and there a star,
Some lose their way!
Here a mist, and there a mist,
Afterwards – day!
In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015.
Eu perco o chão
Eu não acho as palavras
Eu ando tão triste
Eu ando pela sala
Eu perco a hora,
Eu chego no fim
Eu deixo a porta aberta
Eu não moro mais em mim
Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos,
Eu estou ao meio
Onde será que você está
Agora?
In: REIS-SÁ, Jorge (org.). Creio que foi o sorriso . Uma antologia. A Casa dos Ceifeiros, 2020.
A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doçura, deve ser comida, como você me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpa apertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada.
Você gosta de acariciar o pêssego e despi-lo a faca, e prefere que as maçãs venham opacas para que cada um possa fazê-las brilhar com as mãos.
O limão inspira a você respeito, e as laranjas, riso. Não há nada mais ridículo que o abacaxi, com sua couraça de guerreiro medieval.
Os tomates e os pimentões parecem nascidos para se exibirem de pança para o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguiças, mas na realidade os tomates começam a viver sua vida quando se misturam ao orégano, ao sal e ao azeite, e os pimentões não encontram seu destino até que o calor do forno os deixa em carne viva e nossas bocas os mordem com desejo.
As especiarias formam, na feira, um mundo à parte. São minúsculas e poderosas. Não há carne que não se excite e jorre caldos, carne de vaca ou de peixe, de porco ou de cordeiro, quando penetrada pelas especiarias. Nós temos sempre presente que se não fosse pelos temperos não teríamos nascido na América, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo, foram os temperos que empurraram Cristóvão Colombo e Simbad, o Marujo.
As folhinhas de louro têm uma linda maneira de se quebrarem em sua mão antes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Você gosta muito do romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nunca saberá se é por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, tempero dos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: é o único que chega aos pratos verde e vivo e úmido de gotinhas frescas.
Mulheres
Ainda não sei como contar-te que cresci
sem mar. Que andei a verter sangue a vida
toda, de coração golpeado pelas cercas vivas
dos meus lugares. Não sei como contar-te
da minha ânsia de fugir, de correr até à praia
e cegar a memória, de como me atirei
em desespero contra os espinhos, e de como
sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.
Agora cheguei ao mar e o sal arde-me
nas feridas. Tenho um chão de areia quente
que me queima os pés, tão gastos de correr.
Cheguei ao mar. Ao espanto comovente
do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta
como as rochas ao longe.
Sou livre e não me movo.
Não sei como se faz isto de viver.
In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35
O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.
Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na devida ocasião.
O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido?" "Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava".
|Contos plausíveis. J. Olympio, 1981.
Um caco de azulejo sobre uma flanela surrada
algumas contas dispersas de um terço desfeito.
E o passado chegando em fiapos.
Um saco de retalhos, uma torneira fosca
entre parafusos. Um anel que vinho no doce.
Miçangas no ar a morrinha do tempo.
Um pé de meia solteira, de onde surgiu
aquele botão florido, um ajuste no paletó do tio.
Última lembrança da louça antes de partir.
Um número descolado da fachada
que poupou tantas visitas
e extraviou todas as cartas.
Uma xícara rachada, guardada bem no desenho da moça.
Uma carcaça de chuveiro, um vazamento na saudade
uma resistência, queimada.
O pai à cabeceira desfiando com a cadeira de palhinha.
Nove lustres de vidro, uma beleza passageira
no dia do eterno despercebido.
Uma renda quase branca, no tom dos ancestrais.
Um café tão doce quanto o dedinho de prosa,
que cantiga era aquela mesmo?
Um santinho colorido do qual esqueci o nome
um bordado no puído, um outro jeito de ter brio.
Mecha de cabelo, lata de engraxar sapato.
A dor nos panos de pranto, o medo às três da manhã.
Ter de lidar com o tanto de saudade da irmã
e o incômodo das rimas acidentais.
Um cabo de panela solto, um mimo, um agnus-dei
uma piada esquecida, frouxa, uma rua que me lembra
o que na ferrugem dela vai comigo.
Um vidro de graxa, uma polia desencaixada
para sempre de qualquer expectativa.
A chave certa, sem fechadura.
O botão da cortina encomendada pro casório, uma aspirina
diária pra modo de não enfartar, um palavrório
providencial, dissolvido na dúvida.
Uma costela de adão num vaso equilibrado
sobre uma lata de goiabada. Um nó de pinho de riga
no chão, um taco tirado do peito.
Uma concha achada incrível, no mar de Guarapari
um susto horizontal, a promessa de voltar
qualquer hora à Mantiqueira.
Um prego no colchão me levanta e deitam molas
brocas de cisma, pigarro na garganta.
Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...