18 de abr. de 2022

Água marinha :: Alex Varella




Dois pedacinhos de mar

duas pedrinhas

de água

duas pedrinhas

de nada

teus olhos fazem existir o mar


 In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

11 de abr. de 2022

Elegiazinha :: ASCHER, Nelson.

Remedios Varo

[i. m. nikita (gata da Inês)]


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.




In:_____. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

1 de abr. de 2022

Wislawa Szymborska :: Vida difícil com a memória


Sou um péssimo público para a minha memória.
Ela quer que eu ouça sua voz incessantemente,
mas eu me agito, tusso
ouço e não ouço,
saio, volto e saio de novo.

Ela requer todo o meu tempo e atenção.
Quando durmo, é fácil para ela.
De dia já nem tanto, o que a magoa.

Me propõe zelosamente velhas cartas, fotos,
revolve fatos importantes e desimportantes,
devolve a vista para paisagens ignoradas,
e povoa-as com os meus mortos.

Nos seus relatos sou sempre mais jovem.
Isso é bom, mas por que sempre essa história?
Cada espelho me dá outras notícias.

Irrita-se quando dou de ombros.
E então se vinga remexendo todos os meus erros,
graves, mas que já não pesam.
Me olha nos olhos, espera minha reação.
Por fim me consola; podia ter sido pior.

Quer que agora eu viva só para ela e com ela.
De preferencia num quarto escuro e fechado,
mas nos meus planos ainda figuram o sol presente,
as nuvens atuais, as estradas correntes.

Às vezes fico farta de sua companhia.
Proponho nos separarmos. De hoje para sempre.
Então sorri com complacência,
sabe que também para mim seria uma condenação.

Trad.: Regina Przybycien

28 de mar. de 2022

MACHADO, António:: Proverbios y cantares

Nunca persegui a glória

nem preservar na memória

dos homens minha canção:

eu amo os mundos sutis,

sem gravidade e gentis

como bolhas de sabão.

É bom vê-los se pintando

de sol e pasto, voando

ao céu azul, tremulando

e de repente estourando.

........................


Nunca perseguí la gloria

ni dejar en la memoria

de los hombres mi canción;

yo amo los mundos sutiles,

ingrávidos y gentiles

como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse

de sol y grana, volar

bajo el cielo azul, temblar

subitamente y quebrarse.


In:_____. Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1983. 

21 de mar. de 2022

HEINE, Heinrich :: Uma garota, lá na praia


 John Lavery


Uma garota, lá na praia,

Acompanhando o pôr do sol,

Com olhos rasos d’água solta

Suspiros fundos e alguns ais.


Ora, garota, paciência!

É sempre a mesma velha história:

Agora o astro sai de cena –

De manhãzinha, está de volta.

.....................................

Das Fräulein stand am Meere

Und seufzte lang und bang,

Es rührte sie so sehre

Der Sonnenuntergang.


Mein Fräulein! seyn Sie munter,

Das ist ein altes Stück;

Hier vorne geht sie unter

Und kehrt von hinten zurück.



 In:_____. Heine, heim? Poeta dos contrários. Org. e trad. por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011.

14 de mar. de 2022

Os deslembrados :: BRECHT, Bertolt

Van Gogh 

Eles vivem e morrem por aí –

Numa estrangeira viela

A vida com violência os atropela

E se põe a fugir.

Viveram e morreram e lutaram duro

E criaram suas crianças

E aí na mais distante deslembrança

Terminam seu percurso.

..........................

Die Vergessenen

 

Sie leben und sterben irgendwo

An einem fremden Steg

Das Leben geht vorüber roh

Und über sie hinweg.

Sie lebten und starben und rangen schwer

Und zogen Kinder auf

Und dann in ferner Vergessenheit hehr

Sie enden ihren Lauf.

"Die Vergessenen" / "Os deslembrados". In:_____. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.

11 de mar. de 2022

TUDO ISSO HÁ DE COMEÇAR MAIS UMA VEZ :: Geir Gulliksen

Tudo isso há de começar mais uma vez

o livro que eu levava pra todo lado e lia

vai ser lido por outro alguém. Alguém há de aprender

a contar até dez pela primeira vez, depois até cem

e alguém há de aprender os dias da semana e assim há de saber

que a sexta-feira é o melhor e que o domingo é o pior dia da semana

porque domingo é o dia em que só fazemos esperar pela segunda-feira

e com a segunda-feira até a quinta-feira é impossível contar

se a gente trabalha o dia inteiro e fica sentado numa cadeira de noite

Porém, mesmo assim tudo isso há de começar mais um vez:

alguém há de sentar na escadaria sob essa luz sarapintada

tentando escrever um poeminha num pedaço de papel

e alguém há de aprender a pedalar,

e alguém há de ler que o universo encontra-se em expansão

e sobre sóis que só sabem seguir explodindo

e alguém há de estudar hebraico antigo e ornitologia

e passear à noitinha com as mãos no bolso do casaco

sabendo que há de morrer, mas não já já

antes outro alguém há de se apaixonar por ele, tomara,

e depois alguém há de deixá-lo, mas não já já

pois tudo isso há de começar mais uma vez: alguém há de ler

Pablo Neruda pela primeira vez, e Osip Mandelstam

e Bertholt Brecht, alguém há de ler Wisława Szymborska

e alguém há de descobrir quantos somos nós todos que vivemos nesse mundo

e de repente há de entender que cada um de nós é um indivíduo

mesmo que não haja individualismo suficiente para todos

e mesmo que não seja verdade que todas as pessoas

têm o mesmo valor, alguém há de aprender isso e crer nisso

até que não seja mais possível seguir crendo nisso

pois isso não parece ser verdade

pois isso não parece possível de se realizar

mesmo que não seja possível crer em mais nada além do fato

de a escuridão escalar os vários andares

e de a escuridão um dia chegar aos teus pés

e de tu um dia vadear nela e de ela chegar até as tuas mãos

e gritar na escuridão e beber a escuridão, não por que tens sede

mas porque não há mais nada senão ela, e porque aquela velha

luz sarapintada que não havia era suficiente para todos

não é mesmo? mas tudo isso há de ser repetido por outro alguém

e a luz dispara sem parar cruzando a escuridão

de 300.000 quilômetros e leva menos tempo para te achar do que um gato esquelético

enquanto estás ali parado tentando achar as chaves no bolso do casaco

e tudo o que te acontece acontece creias ou não creias que seja verdade

7 de mar. de 2022

Nossa porção de noite: DICKINSON, Emily


Grant Glendinning

Nossa porção de noite —

Nossa porção de aurora —

Nossa ausência de amor —

Nossa ausência de agrura —


Uma estrela, outra estrela

Que se extravia!

Uma névoa, outra névoa,

Depois – o Dia!

...........................

Our share of night to bear –  

Our share of morning –  

Our blank in bliss to fill 

Our blank in scorning –  

 

Here a star, and there a star,      

Some lose their way! 

Here a mist, and there a mist, 

Afterwards – day!


In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015.

5 de mar. de 2022

Wisława Szymborska: As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a  palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.


"Instante". In:_____. Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

28 de fev. de 2022

Metade :: CALCANHOTO, Adriana.

Eu perco o chão

Eu não acho as palavras

Eu ando tão triste 

Eu ando pela sala

Eu perco a hora, 

Eu chego no fim

Eu deixo a porta aberta

Eu não moro mais em mim


             Eu perco as chaves de casa

Eu perco o freio

Estou em milhares de cacos, 

Eu estou ao meio

Onde será que você está 

Agora?


 In: REIS-SÁ, Jorge (org.). Creio que foi o sorriso . Uma antologia. A Casa dos Ceifeiros, 2020.

21 de fev. de 2022

A feira:: Eduardo Galeano

A ameixa gorda, de puro caldo que te inunda de doçura, deve ser comida, como você me ensinou, com os olhos fechados. A ameixa vermelhona, de polpa apertada e vermelha, deve ser comida sendo olhada. 

Você gosta de acariciar o pêssego e despi-lo a faca, e prefere que as maçãs venham opacas para que cada um possa fazê-las brilhar com as mãos.

O limão inspira a você respeito, e as laranjas, riso. Não há nada mais ridículo que o abacaxi, com sua couraça de guerreiro medieval.

Os tomates e os pimentões parecem nascidos para se exibirem de pança para o sol nas cestas, sensuais de brilhos e preguiças, mas na realidade os tomates começam a viver sua vida quando se misturam ao orégano, ao sal e ao azeite, e os pimentões não encontram seu destino até que o calor do forno os deixa em carne viva e nossas bocas os mordem com desejo.

As especiarias formam, na feira, um mundo à parte. São minúsculas e poderosas. Não há carne que não se excite e jorre caldos, carne de vaca ou de peixe, de porco ou de cordeiro, quando penetrada pelas especiarias. Nós temos sempre presente que se não fosse pelos temperos não teríamos nascido na América, e nos teria faltado magia na mesa e nos sonhos. Ao fim e ao cabo, foram os temperos que empurraram Cristóvão Colombo e Simbad, o Marujo.

As folhinhas de louro têm uma linda maneira de se quebrarem em sua mão antes de cair suavemente sobre a carne assada ou os ravioles. Você gosta muito do romeiro e da verbena, da noz-moscada, da alfavaca e da canela, mas nunca saberá se é por causa dos aromas, dos sabores ou dos nomes. A salsinha, tempero dos pobres, leva uma vantagem sobre todos os outros: é o único que chega aos pratos verde e vivo e úmido de gotinhas frescas.


 Mulheres

15 de fev. de 2022

Ainda não sei:: Virgínia do Carmo

Ainda não sei como contar-te que cresci

sem mar. Que andei a verter sangue a vida

toda, de coração golpeado pelas cercas vivas

dos meus lugares. Não sei como contar-te 

da minha ânsia de fugir, de correr até à praia

e cegar a memória, de como me atirei

em desespero contra os espinhos, e de como

sangrei, exausta, na sombra dos fracassos.


Agora cheguei ao mar e o sal arde-me


nas feridas. Tenho um chão de areia quente

que me queima os pés, tão gastos de correr.

Cheguei ao mar. Ao espanto comovente 

do mar, e permaneço imóvel. Tão quieta

como as rochas ao longe.

Sou livre e não me movo.

Não sei como se faz isto de viver.



In: Ecos de Green Rose. Poética, 2019, p. 35

7 de fev. de 2022

MANEIRA DE AMAR : Carlos Drummond de Andrade

Camille Engel 

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.

Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na devida ocasião.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.

Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido?" "Não, respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava".

|Contos plausíveis. J. Olympio, 1981. 



5 de fev. de 2022

Caixa de Ferramentas:: Marcilio Godoi

Um caco de azulejo sobre uma flanela surrada

algumas contas dispersas de um terço desfeito.

E o passado chegando em fiapos.


Um saco de retalhos, uma torneira fosca

entre parafusos. Um anel que vinho no doce.

Miçangas no ar a morrinha do tempo.


Um pé de meia solteira, de onde surgiu

aquele botão florido, um ajuste no paletó do tio.

Última lembrança da louça antes de partir.


Um número descolado da fachada

que poupou tantas visitas

e extraviou todas as cartas.


Uma xícara rachada, guardada bem no desenho da moça.

Uma carcaça de chuveiro, um vazamento na saudade

uma resistência, queimada.


O pai à cabeceira desfiando com a cadeira de palhinha.

Nove lustres de vidro, uma beleza passageira

no dia do eterno despercebido.


Uma renda quase branca, no tom dos ancestrais.

Um café tão doce quanto o dedinho de prosa,

que cantiga era aquela mesmo?


Um santinho colorido do qual esqueci o nome

um bordado no puído, um outro jeito de ter brio.

Mecha de cabelo, lata de engraxar sapato.


A dor nos panos de pranto, o medo às três da manhã.

Ter de lidar com o tanto de saudade da irmã

e o incômodo das rimas acidentais.


Um cabo de panela solto, um mimo, um agnus-dei

uma piada esquecida, frouxa, uma rua que me lembra

o que na ferrugem dela vai comigo.

 

Um vidro de graxa, uma polia desencaixada

para sempre de qualquer expectativa.

A chave certa, sem fechadura.


O botão da cortina encomendada pro casório, uma aspirina

diária pra modo de não enfartar, um palavrório

providencial, dissolvido na dúvida.


Uma costela de adão num vaso equilibrado

sobre uma lata de goiabada. Um nó de pinho de riga

no chão, um taco tirado do peito.


Uma concha achada incrível, no mar de Guarapari

um susto horizontal, a promessa de voltar

qualquer hora à Mantiqueira.


Um prego no colchão me levanta e deitam molas

brocas de cisma, pigarro na garganta.

Uma imagem de prazer :: Clarice Lispector

     Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de uma flor...