"os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos
passam-se dias, e ainda encontramos os fios do seu cabelo espalhados pela casa
passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marca-páginas guardando o fogo da última palavra lida
passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita do seu próprio punho e que nunca chegou a ser enviada
são lentos, os mortos
demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida
são lentos
como é lento o amor
como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos
como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso
como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa
como sangue
em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos
os mortos no entanto continuam sangrando
sangram por décadas, por gerações
sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa
sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha
entre duas irmãs
e topamos com seu rosto renascido
em outros rostos
não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua
e que não conhecemos
sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí
eles acham jeito de voltar
de permanecer
eles acham jeito de surgir num sorriso
na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas
num gesto breve
qualquer
os mortos, os mortos
tão vivos"
Fonte: A mulher submersa. Editora Urutau.