Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
18 de out. de 2023
3 de out. de 2023
Banhos de mar :: Clarice Lispector
Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar. E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda, Recife.
Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda ainda na escuridão?
De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da família. Vestíamo-nos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim devia ser: em jejum.
Saíamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. Até que lá de longe ouvíamos o seu barulho se aproximando. Eu me sentava bem na ponta do banco: e minha felicidade começava. Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo.
Eu olhava tudo: as poucas pessoas na rua, a passagem pelo campo com os bichos-de-pé: “Olhe um porco de verdade!” gritei uma vez, e a frase de deslumbramento ficou sendo uma das brincadeiras de minha família, que de vez em quando me dizia rindo: “Olhe um porco de verdade.”
Passávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer.
Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária.
No bonde mesmo começava a amanhecer. Meu coração batia forte ao nos aproximarmos de Olinda. Finalmente saltávamos e íamos andando para as cabinas pisando em terreno já de areia misturada com plantas. Mudávamos de roupa nas cabinas. E nunca um corpo desabrochou como o meu quando eu saía da cabina e sabia o que me esperava.
O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo.
Outras pessoas também acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as senhoras, em cada um dos braços, agarravam o banhista para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.
O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele.
Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que trabalhar cedo. Mudávamos de roupa, e a roupa ficava impregnada de sal. Meus cabelos salgados me colavam na cabeça.
Então esperávamos, ao vento, a vinda do bonde para Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal. Eu às vezes lambia meu braço para sentir sua grossura de sal e iodo.
Chegávamos em casa e só então tomávamos café. E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura.
Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar.
A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais?
Nunca mais.
Nunca.
2 de out. de 2023
Eduardo Galeano :: O Medo Global
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.
Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.
Quem não tem medo da fome, tem medo de comida.
Os motoristas têm medo de caminhar e os pedestres têm medo de serem atropelados.
A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer.
Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.
É o tempo do medo.
Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo.
Medo dos ladrões, medo da polícia.
Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógios, da criança sem televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem comprimidos para despertar.
Medo da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver.
in: 𝘋𝘦 𝘱𝘦𝘳𝘯𝘢𝘴 𝘱𝘳𝘰 𝘢𝘳: 𝘢 𝘦𝘴𝘤𝘰𝘭𝘢 𝘥𝘰 𝘮𝘶𝘯𝘥𝘰 𝘢𝘰 𝘢𝘷𝘦𝘴𝘴o.
23 de set. de 2023
Poema antinaturalista :: Marcílio Godoi
Vilhelm Hammershoi
O antropólogo me assustou, dizendo
que ao depararmos com uma imagem
esta também nos espreita
ansiando por nos decifrar.
Há muitos modos de ver, é certo
mas a consciência de também ser flagrado
inquirido pela história, pelo tempo, pelo outro
pela arte, pelas coisas que vemos
fez girar, afetiva e tautologicamente
outras lentes também por aqui.
Como as que garantem
que uma canção pode me cantar
que um fruto me devora
ou que os lugares é que me visitam.
Que este poema, de algum modo
num espelho me lê por inteiro
e também me escreveu.
E que eu só existo, amor
porque me olhas, teu.
18 de set. de 2023
Berta Piñán – Duas Garças
Chegaram no sábado. Vimo-las
cedo porque nesse dia chegou
também o frio e passamos
a manhã falando do tempo.
São duas, e me pergunto que
destino imprevisto as trouxe
a esta árvore precisa, a este lugar
exato em que o tempo delas
cruza, como um sinal confuso,
nosso tempo.
De tarde falamos sobre elas:
“Esta espera, imóvel, paciente – dizes -,
traça não sei que estranha, antiga imagem
da vida”.
Depois ficamos em silêncio, observando,
espiando sua perfeita quietude
sobre as águas que atravessam
o inverno, e assim,
por um momento resumem
para nós a
contemplação
do mundo: este rio, estas árvores,
o céu de outono, o calor,
o frio.
Tradução.: Nelson Santander
......
Llegaron el sábado. Las vimos
temprano porque ese día comenzó
también el frío y echamos
la mañana charlando del tiempo.
Son dos, y me pregunto qué
destino imprevisto las trae
a este árbol preciso, a este lugar
exacto en que su tiempo
atraviesa, como un signo confuso,
nuestro tiempo.
Por la tarde hablamos de ellas:
“Esta espera suya, inmóvil, terca – dices -,
no sé qué extraña, antigua imagen
traza de la vida”.
Después quedamos en silencio, mirando,
espiando su perfecta quietud
sobre las aguas que pasan
del invierno, y entonces,
por un momento, resumen
para nosotras la
contemplación
del mundo: este río, estos árboles,
el cielo de otoño, el calor,
el frío.
14 de set. de 2023
Sinais 2020, Júlia Rocha Instruções para pintores & poetas :: Lawrence Ferlinghetti
Perguntei a cem pintores e a cem poetas
como pintar a luz do sol
no rosto da vida
As respostas foram ambíguas e ingênuas
como se estivessem guardando segredos comerciais
Entretanto, me parece que
tudo que você tem que fazer
é criar o mundo inteiro
e toda a humanidade
como uma espécie de obra de arte
uma obra de arte site-specific
um projeto de arte do deus da luz
toda a Terra e tudo o que há nela
pintado com luz
E a primeira coisa a se fazer
é pintar algo pós-moderno
E, depois, pintar a si mesmo
em cores verdadeiras
em cores primárias
como vocês as vê
(sem cal)
pinte-se como você se vê
sem maquiagem
sem máscaras
Depois, pinte suas pessoas e animais favoritos
com seu pincel cheio de luz
E certifique-se de que a perspectiva está correta
E não finja
pois uma linha falsa leva a outra
E então pinte altas colinas
quando tocadas pela primeira vez pelo sol
em uma manhã de outono
Com a espátula
coloque
as folhas amarelas de cádmio
as folhas ocres
as folhas de vermelhão
de um outono da Nova Inglaterra
E pinte a luz fantasma das noites de verão
e a luz do sol da meia-noite
que é a luz da lua
E não pinte as sombras feitas pela luz
pois sem chiaroscuro terá imagens superficiais
Então pinte também todos os cantos escuros
de todo o mundo
todos os lugares escondidos e corações e mentes
que a luz jamais alcança
todas as cavernas de ignorância e medo
a fossa do desespero
as lamas do desânimo
e escreva bem claramente
“Deixai todo desespero, vós que entrais”
E não se esqueça de pintar
todos aqueles que viveram suas vidas
como portadores de luz
Pinte seus olhos
e os olhos de cada animal
e os olhos de belas mulheres
mais conhecidas pela perfeição de seus seios
e os olhos de homens e mulheres
conhecidos apenas pela luz de suas mentes
Pinte a luz de seus olhos
a luz do riso iluminado pelo sol
a canção dos olhos
a canção dos pássaros em voo
E lembre-se de que a luz é interior
em qualquer lugar
e você deve pintar de dentro
Comece com pureza
com branco puro
o branco puro do gesso
o branco puro do cádmio branco
o branco puro do flake white
a tela pura e virgem
a vida pura, início de todos nós
Turner pintou a luz do sol
com têmpera a ovo
(que se mostrou instável)
e Van Gogh fez o mesmo com loucura
e sangue de sua orelha
(também instável)
e os impressionistas também
por jamais usar preto
e os expressionistas abstratos também
com pintura de casa branca
Mas você pode fazer isso com o pigmento puro
(se conseguir descobrir a fórmula)
de sua própria e verdadeira luz
mas antes de dar a primeira pincelada
na tela virgem
lembre de sua fragilidade
a extrema fragilidade da vida
e lembre sua inocência
sua inocência original
antes da primeira pincelada
Ou talvez nem comece
E deixe a luz atravessar
a luz interna da tela
a luz interna dos modelos
nos estudos da vida
a luz interior de todos
Deixe tudo fluir
como um pentimento
a luz pintada
a vida pintada
inúmeras vezes
Deixe tudo emergir
a imagem pintada
da vida primitiva na terra
E quando terminar sua pintura
afaste-se atônito
afaste-se e observe
a vida que criou na terra
a vida iluminada na terra
você criou
um admirável mundo novo
......
Instructions to Painters & Poets
I asked a hundred painters and a hundred poets
how to paint sunlight
on the face of life
Their answers were ambiguous and ingenuous
as if they were all guarding trade secrets
Whereas it seems to me
all you have to do
is conceive of the whole world
and all humanity
as a kind of art work
a site-specific art work
an art project of the god of light
the whole earth and all that’s in it
to be painted with light
And the first thing you have to do
is paint out postmodern painting
And the next thing is to paint yourself
in your true colors
in primary colors
as you see them
(without whitewash)
paint yourself as you see yourself
without make-up
without masks
Then paint your favorite people and animals
with your brush loaded with light
And be sure you get the perspective right
and don’t fake it
because one false line leads to another
And then paint the high hills
when the sun first strikes them
on an autumn morning
With your palette knife
lay it on
the cadmium yellow leaves
the ochre leaves
the vermillion leaves
of a New England autumn
And paint the ghost light of summer nights
and the light of the midnight sun
which is moon light
And don’t paint out the shadows made by light
for without chiaroscuro you’ll have shallow pictures
So paint all the dark corners too
everywhere in the world
all the hidden places and minds and hearts
which light never reaches
all the caves of ignorance and fear
the pits of despair
the sloughs of despond
and write plain upon them
“Abandon all despair, ye who enter here”
And don’t forget to paint
all those who lived their lives
as bearers of light
Paint their eyes
and the eyes of every animal
and the eyes of beautiful women
known best for the perfection of their breasts
and the eyes of men and women
known only for the light of their minds
Paint the light of their eyes
the light of sunlit laughter
the song of eyes
the song of birds in flight
And remember that the light is within
if it is anywhere
and you must paint from the inside
Start with purity
with pure white
the pure white of gesso
the pure white of cadmium white
the pure white of flake white
the pure virgin canvas
the pure life we all begin with
Turner painted sunlight
with egg tempera
(which proved unstable)
and Van Gogh did it with madness
and the blood of his ear
(also unstable)
and the Impressionists did it
by never using black
and the Abstract Expressionists did it
with white house paint
But you can do it with the pure pigment
(if you can figure out the formula)
of your own true light
But before you striek the first blow
on the virgin canvas
remember its fragility
life’s extreme fragility
and remember its innocence
its original innocence
before you strike the first blow
Or perhaps never strike it
And let the light come through
the inner light of the canvas
the inner light of the models posed
in the life study
the inner light of everyone
Let it all come through
like a pentimento
the light that’s been painted over
the life that’s been painted over
so many times
Let it all surge to the surface
the painted-over image
of primal life on earth
And when you’ve finished your painting
stand back astonished
stand back and observe
the life on earth that you’ve created
the lighted life on earth
that you’ve created
a new brave world
7 de set. de 2023
A cada cem pessoas :: Wisława Szymborska
A cada cem pessoas:
sabem de tudo e muito melhor do que os outros:
– cinquenta e duas.
ficam inseguras a cada passo:
– quase todas as outras.
estão prontas a ajudar
desde é claro que isso não lhes tome muito tempo:
– quarenta e nove, o que já não é mau.
são sempre boas porque incapazes de ser de outro modo:
– quatro… vá lá, talvez cinco.
estão prontas a admirar sem inveja:
– dezoito.
são induzidas ao erro
por uma juventude que passa tão depressa:
– umas sessenta.
com quem não se pode brincar:
– quarenta e quatro.
vivem angustiadas em relação a alguém ou a qualquer coisa:
– setenta e sete.
são dotadíssimas para a felicidade:
– no máximo vinte e tal.
inofensivas quando sozinhas
mas selvagens quando em multidão:
– isso, o melhor é não tentar saber nem aproximadamente.
não pedem nada da vida exceto coisas:
– trinta, mas preferia estar enganada.
encurvadas, sofridas,
sem uma lanterna que lhes ilumine as trevas:
– cedo ou tarde, oitenta e três.
justas:
– pelo menos trinta e cinco, e lamba os beiços.
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender:
– três.
dignas de compaixão:
– noventa e nove.
mortais:
– cem entre cem,
número que, até momento, não é possível alterar.
Wisława Szymborska, in Instante, Relógio D’Água, 2006, pp. 63-65.
4 de set. de 2023
MOÇAS DAS DOCAS :: 20 Setembro 1926 (Moçambique) -04 Dezembro 2002 (Cascais) Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares
Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço.
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trançadas,
nossos corpos submissos e escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite.
Viemos ...
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer espáduas todo o dia vergadas
sobre sedas que outras exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança.
(Excerto)
2 de set. de 2023
Manacá-de-jardim ou manacá-de-cheiro (Brunfelsia uniflora)
É uma árvore de folhas pequenas e permanentes, de crescimento de velocidade média e que pode atingir cerca de 3 metros de altura, com 2 metros de diâmetro da copa arredondada. A floração decorre entre setembro a março e produz flores brancas e lilases. A frutificação é do tipo cápsula. A propagação é por mergulhia e não suporta transplante.
Esta espécie é muito utilizada como ornamento, pela sua beleza e perfume. Durante todo o ano é possível ver na sua proximidade a borboleta-do-manacá, que deposita os ovos apenas nas folhas dessa planta, que é o único alimento de suas larvas.
fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.
7 de ago. de 2023
Estéril :: Líria Porto
Daniel Formigo
a minha fonte secou
eu só quero um copo d'água
não há um pingo de orvalho
vida poeira esta vida
não há flores no jardim
minhas palavras murcharam-se
o riso se evaporou
ficou tão crespa minh'alma
plantara tanta ilusão
os meus sonhos desfolharam
já chorei todas as lágrimas
coitados – meus olhos ardem
reclamo um pouco de tudo
e só me resta a mortalha
embrulhada no cantinho
da prateleira do nada
* líria porto
30 de jul. de 2023
Vicky :: Marcílio Godoi
Vicky
Caro Antônio,
Teu pai está bem. Chego sempre ao final da tarde apanho-o um pouco cansado da barra do dia. Mas a passos lentos ele me abre a porta e espera paciente que eu lhe prepare a sopa. Prefere a de abóbora, que consome com calma beliscando o pão como um passarinho sovina, catando as migalhas da mesa.
Sua pele aos poucos foi virando uma película frágil, retendo com dignidade os ossos que apontam, espetando-o por dentro os ombros, cotovelos, joelhos e calcanhares. De modo que, ao acariciar o dorso de suas mãos, é como se tocássemos o rizoma de suas veias, vasos protuberantes e microcanais que atravessam um arquipélago de manchas arroxeadas.
Subindo à altura do braço, dá pra ver, quando ele arregaça as mangas do pijama pra comer, através da fina hidrografia, o desenho dos músculos retendo e mantendo ainda íntegro o conjunto que, nos delicados jogos de contrapeso dos reflexos, resultam no seu rosto em um lindo sorriso de agradecimento.
Gosto de ficar com ele, que com sua doçura também me socorre da dureza de meus dias no hospital. Dorme cedo, não costuma me dar trabalho. Ontem pareceu-me com o pulmão cheio, abri sua blusa para esparramar um pouco de pomada de cânfora em seu peito, quando já estava deitado.
A transparência da pele entre as costelas era tanta que jurei ter visto o seu coração, que batia fraquinho, mas bem ritmado, lá no fundo. Hoje está bonzinho, cansou da tevê faz tempo, mas do seu livrinho de capa dura não larga nunca. Pensei que era uma bíblia, um livro de salmos, depois é que me dei conta de que se trata de uma edição muito antiga do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, publicada pela José Olympio.
Conta-me de modo saudoso as passagens com Sancho e Rocinante como se tivessem se passado com ele. Dia desses estava assustado por ter visto um tal Sansão Carrasco quando eu lhe barbeava no espelho. Amiúde, depois dessa hora, quando o sol aponta em sua janela, acalma-se da aflição da noite, a gente se despede, ele fica com seu livro infinito e eu sigo para a clínica.
Hoje devo atrasar na volta, porque tenho de passar antes nos correios e no mercado. Volto pra casa às pressas, sempre nas fortes tempestades, pois ele teme o "fragor das trovoadas", como gosta de repetir. No mais, às vezes brinca me chamando de Dulcineia de Toboso, que eu nem sei quem é. Mas posso te garantir que sua cabeça está boazinha, ele bem sabe que sou Vicky, sua enfermeira.
Con mucho afecto,
respetuosamente,
Victoria
3 de jul. de 2023
Vermeer :: SZYMBORSKA, Wisława.
19 de jun. de 2023
Sete Sapatos :: Mia Couto
"Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei Sete Sapatos Sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico:
- Primeiro Sapato - A ideia de que os culpados são sempre os outros;
- Segundo Sapato - A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;
- Terceiro Sapato - O preconceito de que quem crítica é um inimigo;
- Quarto Sapato - A ideia de que mudar as palavras muda a realidade;
- Quinto Sapato - A vergonha de ser pobre e o culto das aparências;
- Sexto Sapato - A passividade perante a injustiça;
- Sétimo Sapato - A ideia de que, para sermos modernos, temos de imitar os outros.”
Mia Couto
Excerto da Oração de Sapiência na Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique, 7 de março de 2005
5 de jun. de 2023
O relógio :: Baudelaire
Os chineses vêem as horas nos olhos dos gatos.
Um dia um missionário, passeando pelos subúrbios de Nanquim, percebeu que tinha esquecido seu relógio e perguntou as horas a um menino.
O garoto do Império Celeste, inicialmente, hesitou depois, reconsiderando, respondeu: “Vou lhe dizer.” E desapareceu. Poucos instantes depois voltou trazendo no colo um grande gato e olhando, como se costuma dizer, no branco dos olhos, afirmou sem hesitar: “Não é ainda meio-dia.” O que era verdade.
Por mim, se me inclinar para a bela Felina, assim tão bem chamada, que é, ao mesmo tempo a honra de seu sexo, o orgulho do meu coração e o perfume do meu espírito, quer seja noite, quer seja dia, em plena luz ou na sombra opaca, no fundo de seus olhos adoráveis, vejo sempre a hora distintamente, sempre a mesma, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisões, nem de minutos, nem de segundos — uma hora imóvel que não é marcada no mostrador dos relógios e, entretanto, leve como um suspiro, rápida como uma olhadela.
E se algum importuno vier me perturbar enquanto meu olhar repousa sobre esse delicioso mostrador, se qualquer gênio desonesto e intolerante, qualquer demônio do contratempo vier me dizer: “O que olhas tu com tanto cuidado? O que procuras nos olhos desse ser? Vês a hora, pródigo e mortal preguiçoso? , eu responderia, sem hesitar: Sim, eu vejo a hora: a Eternidade.”
Não é, madame, que aqui tendes um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático como vós mesma? Na verdade tive tanto prazer em bordar essa pretensiosa galanteria que não vou pedir nada em troca.
31 de mai. de 2023
Fala :: Orides Fontela |
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade).
29 de mai. de 2023
Vem à Quinta-feira :: Filipa Leal
Vem à Quinta-feira.
É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.
Vem à Quinta-feira.
A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.
Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.
Vem à Quinta-feira
Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
— ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.
Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.
25 de mai. de 2023
Tenho tanto sentimento:: Fernando Pessoa
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
18-9-1933Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
- 179.
15 de mai. de 2023
Glosa :: Fernando Pessoa
Quem me roubou a minha dor antiga,
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
Onde a minha saudade a cor se trava ?
14 de mai. de 2023
Tudo passa :: Marcílio Godoi
No rejunte dos embaciados azulejos da cozinha, um dia o pai bateu, pela altura de seus olhos, dois pregos. Não muito estáveis, espaçados em um palmo, mas firmes o bastante para dependurar, naquela parede quente e fria da casa antiga, uma pequena tabuleta preta, de madeira, rente ao batente, perto da porta da geladeira.
Na plaquinha ia pintada, ao final de uma estradinha, uma casota de onde escapava a fumaça de uma chaminé. Espalhavam-se pela base quatro ganchos em forma de pergunta. Com o tempo, já não sabíamos se a gordura acumulada ali vinha da lareira do desenho ou das frituras do prodigioso fogão branco esmaltado da cozinheira minha mãe.
Eu era um menino desentendido de tudo, mas aquilo era de fácil compreensão. Mesmo de baixo, dava pra ver: tratava-se apenas de um singelo porta-chaves em que se lia, com letra bonita, de professora, o vaticínio tão prosaico quanto alentador: "Tudo passa".
A frase era campeã também nos para-choques dos caminhões que cruzavam as estradas daquele tempo em que tudo passava mesmo. Pensando bem, naquele Brasil de exceção ditatorial, "tudo passa" podia ser lido numa chave subversiva. Afinal, em seu miolo semântico, aparentemente conservador, garantia que nem mesmo uma ditadura viveria para sempre. Só muito depois eu compreenderia isso, pois era um tema difícil pra meninos alheios aos tudo-passavas daquele tempo.
Tempo em que eu e os demais meninos lá de casa não podíamos nem sonhar com o que passava e não passava nos calabouços da repressão política. E os pais cuidavam bem de deixar tudo devidamente bem embaciado no que tratasse daqueles termos.
Engraçado como "tudo passa" atualmente nos parece tão lento. É que hoje tudo corre, tudo voa, tudo zune, tudo ultrapassa. E leva, antes mesmo de acontecer, para o longe do que não veio, o frescor das coisas que nascem e morrem covardemente, sem nenhuma duração. Vivemos um tempo de frações e de meninos bem entendidos, sem impasses, meninos empossados, empoderados, apessoados, apressados. Não de meninos tudopassados como eu era.
Hoje vejo como a gordura que se acumulou no gotejante negrume dos nossos exaustores, por assim dizer, tudo daquela fumaça se nos escorreu. Ou seja, tudo passou mesmo, tragado pela gravidade ou pelo redemoinho do ralo voraz que nos levariam os medos, os brinquedos, os segredos, as fantasias. E depois, aquela tabuleta também, o rejunte, a professora, o fogão, a geladeira, o batente, a casa, tudo, tudo o que passou mesmo, como bem prenunciava aquela doce profecia. Mas onde vão o pai e a mãe?
O pai resiste. Agarra-se na bengala em meio à ventania de sua memória, caminha contra esse vento furioso que assola sua velhice e afrouxa-nos os pregos que ainda nos fixam no mundo. A mãe passou. Mas ainda está aqui, a seu modo. Trouxe-me agora mesmo numa mão o desjejum de pães de queijo imaginários e noutra essa antiga tabuleta porta-chaves de minha infância perdida. É a memória em seu rastilho de pólvora. Ela espera calmamente que eu termine logo de escrever esta crônica desmemoriada e levante a cabeça para outras escrituras.
Minha mãe anda preocupada com minha reticência em aceitar que vida e morte seguem um curso inexorável. Veio mostrar-me a tabuleta outra vez em sonho e dizer-me sem me dizer, dizendo sempre e outra vez, com doçura: tudo passa.
A mãe está serena, mas a minha tristeza, travada em meados de um certo maio, a aflige um pouco, eu posso ver ainda pela fumaça da chaminé de seus prodígios. Percebo que há uma chave num dos ganchos da tabuleta que ela trouxe. Não reconheço bem, talvez seja a da porta de entrada para uma outra porta, talvez a chave de uma porta de saída. Talvez não, é tarde, como saber agora?
Reparando bem, talvez seja a medalha oval dependurada, milagrosa no seu sem tempo. Talvez nem chave alguma não seja, seja apenas a flor da minha idade, teimando prateada em secar ainda em botão, eu, que só sou diferente dessa flor por saber que passarei. Porque tudo passa. Menos a mãe e o pai, que não, que nunca.
Marcilio Godoi. Frágil Recompensa", Editora Sagui, 2018.
8 de mai. de 2023
Palavras:: Anne Sexton
Tem cuidado com as palavras
mesmo as milagrosas.
Pelas milagrosas nós fazemos o melhor possível,
por vezes são como uma multidão de insectos
que não nos deixa uma picada mas um beijo.
Podem ser tão boas como dedos.
Podem ser tão seguras como a rocha
onde te sentas.
Mas também podem ser ao mesmo tempo margaridas e amachucadas.
Contudo, estou apaixonada pelas palavras.
São pombas que caem do teto.
São seis laranjas santas pousadas no meu regaço.
São as árvores, as pernas do verão,
e o sol, seu impetuoso rosto.
No entanto, falham-me com frequência.
Eu tenho tantas coisas que quero dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios, etc.
Mas as palavras não são suficientemente boas,
as erradas beijam-me.
Por vezes voo como uma águia
mas com as asas de uma carriça.
Mas tento ter cuidado
e ser amável com elas.
As palavras e os ovos devem manipular-se com cuidado.
Uma vez partidas,
são impossíveis de reparar.
...
Words
Be careful of words,
even the miraculous ones.
For the miraculous we do our best,
sometimes they swarm like insects
and leave not a sting but a kiss.
They can be as good as fingers.
They can be as trusty as the rock
you stick your bottom on.
But they can be both daisies and bruises.
Yet I am in love with words.
They are doves falling out of the ceiling.
They are six holy oranges sitting in my lap.
They are the trees, the legs of summer,
and the sun, its passionate face.
Yet often they fail me.
I have so much I want to say,
so many stories, images, proverbs, etc.
But the words aren’t good enough,
the wrong ones kiss me.
Sometimes I fly like an eagle
but with the wings of a wren.
But I try to take care
and be gentle to them.
Words and eggs must be handled with care.
Once broken they are impossible
things to repair.
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