Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
30 de set. de 2016
Dez coisas que fazem a vida valer a pena de Rubem Braga
Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.
Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.
Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.
Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.
Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.
Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.
Viajar, partir…
Voltar.
Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio
Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.
fonte: As Boas Coisas da Vida. Record, 1988,
29 de set. de 2016
Um Olhar :: Manoel de Barros
Cyndy-Sims
Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com suas contradições. Acho que essa freqüência nos desencontros ajudava o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não era um defeito físico falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser uma disfunção da alma. Mas ela falou que a ciência não tem lógica. Porque viver não tem lógica – como diria nossa Lispector. Veja isto: Rimbaud botou a beleza nos olhos e viu que a beleza é amarga. Tem Lógica? Também ela quis trocar por duas andorinhas os urubus que avoavam no Ocaso de seu avô. O Ocaso do seu avô tinha virado uma praga de urubu. Ela queria trocar porque as andorinhas eram amoráveis e os urubus eram carniceiros. Ela não tinha certeza se essa troca podia ser feita. O pai falou que verbalmente podia. Que era só despraticar as normas. Achei certo.
28 de set. de 2016
CANÇÃO :: Frank Bidart (Califórnia, EUA 1939
Você sabe que é ali a toca
onde o urso por algum
tempo deixa de existir.
Entre. Afinal, você matou bastante e comeu
bastante para ficar gordo o bastante
e por algum tempo deixar de existir.
Entre. É preciso talento para viver à noite, e esconder
dos outros esse talento, mas agora você fareja
a temporada em que é preciso deixar de existir.
Entre. O que cresce dentro de você,
para o bem ou para o mal, exige que
por algum tempo você deixe de existir.
Não está chovendo lá dentro
esta noite. Você sabe que é lá. Rasteje e entre.
SONG
You know that it is there, lair
where the bear ceases
for a time even to exist.
Crawl in. You have at last killed
enough and eaten enough to be fat
enough to cease for a time to exist.
Crawl in. It takes talent to live at night, and scorning
others you had that talent, but now you sniff
the season when you must cease to exist.
Crawl in. Whatever for good or ill
grows within you needs
you for a time to cease to exist.
It is not raining inside
tonight. You know that it is there. Crawl in.
Contam de Clarice Lispector :: João Cabral de Melo Neto
Edvard Munch
Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?
AGRESTES. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1985
27 de set. de 2016
Amálgamas :: Silvana Conterno
Guardo o que quebrou
Junto cacos, na esperança
De um dia ser inteira
Com as marcas da colagem
Traço o mapa em que me forjei
Desenho único e estranho
Finos traços e queloides
Quem se aproxima e me toca
De olhos fechados me reconhece
Sente planícies calmas, regaço acolhedor
Alguns penhascos de dar vertigem
E cicatrizes profundas
Que hoje preencho
Sem ouro
Uso as palavras
Amálgamas.
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