31 de dez. de 2012

Emma Bianchini - Artista Naif








Final de ano de Carlos Drummond de Andrade


Gurbuz Dogan 

Procuro uma alegria

uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.

Sete ondas de ANDRÉ LAURENTINO


A primeira decisão séria do Ano Novo é o que querer antes das sete ondinhas. Sete pulos e um desejo. Qual? Para as mulheres, inventaram desejos íntimos e secretos, codificados na cor da calcinha: amarela, dinheiro; vermelha, amor; branca, paz; etc. Será que as meninas podem vestir uma calcinha e desejar outra? Valerá como dois desejos, ou valerá por um terceiro, insinuado sinuosamente pelo mistério das contradições femininas?

Um bom desejo: entender as mulheres. Um desejo melhor ainda: morrer tentando.

Dos meus desejos desvairados, queria ser uma árvore, desde que fosse mangueira. Gorda, opulenta, olorosa, magnânima e magistral. Generosa, ampla. Tropical. Mangueira doce, exagerada, sensual. Mangueira mãe. Matriarcal. Ou então queria ser outra árvore, mais equilibrada: um coqueiro. Nada tem de elegante (alto demais, magro demais, com um penacho na cabeça) mas é pura elegância. Surpresa de coqueiro. Alegre durante o dia, solene durante a noite -- quando se enegrece mais do que o céu, e impõe sua negritude sobre o preto e enfrenta as tempestades. Um coqueiro jamais perde a compostura.

Ser também feliz, é claro. Mas de que modo? Não a felicidade dos que vencem, porque nunca vencem. Não quero espalhafate, nem dizer aos outros, nem fazer do meu pirão um caviar. Quero sim é comer pirão. Quero comer caviar.

Ter saúde. E se for para ficar enfermo, que seja uma gripe sem coriza, apenas a dorzinha por dentro dos ossos, dois dias de folga, uma boa febre debaixo do cobertor e alguém para trazer água de coco e perguntar se estou melhorzinho.

Queria ter algum vício que não me mate. Atividade física que não seja item de formulário. Defeito que me faça charmoso. A teimosia dos gênios. A impaciência dos gênios (o diabo é que conheço vários idiotas teimosos e impacientes). Que eu não seja idiota, meu Deus. Queria ler mais. Amar mais. Dormir mais. E cada vez que eu diga as mesmas coisas, que soe como a primeira.

Quero ver você no ano que vem. E no outro. Que possamos estar a sós, sem coisa melhor para fazer. Façamo-la.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Feliz 2012.
fonte: Publicado no guia Divirta-se em O Estado de S. Paulo em dezembro de 2011

30 de dez. de 2012

Estrelas - Catrin Arno


Iolanda de Pablo Milanés ( versão de Chico Buarque)


Esta canção nao é mais que mais uma canção
Quem dera fosse uma declaração de amor
Romântica, sem procurar a justa forma
Do que lhe vem de forma assim tão caudalosa
Te amo, te amo, eternamente te amo
Se me faltares, nem por isso eu morro
Se é pra morrer, quero morrer contigo
Minha solidão se sente acompanhada
Por isso às vezes sei que necessito
Teu colo, teu colo, eternamente teu colo
Quando te vi, eu bem que estava certo
De que me sentiria descoberto
A minha pele vais despindo aos poucos
Me abres o peito quando me acumulas
De amores, de amores, eternamente de amores
Se alguma vez me sinto derrotado
Eu abro mão do sol de cada dia
Rezando o credo que tu me ensinaste
Olho teu rosto e digo à ventania
Iolanda, Iolanda, eternamente Iolanda

29 de dez. de 2012

Sementes




  





Perigo de Sá de Miranda


Comigo me desavim

sou posto em todo perigo
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assim crescesse:
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse

Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho inimigo de mim.



28 de dez. de 2012

Alívio de Miguel de Cervantes


De las miserias suele ser alivio una compañía.  

Psicologia da Composição de João Cabral de Melo Neto


(...)
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza
da palavra escrita.
(...)

27 de dez. de 2012

Inscrição de Cecilia Meireles

Sou entre flor e nuvem, 
Estrela e mar. 
Por que havemos de ser unicamente humanos, 
Limitados em chorar? 

Não encontro caminhos 
Fáceis de andar. 
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras 
Que não sabem de água e de ar. 

E por isso levito. 
É bom deixar 
Um pouco de ternura e encanto indiferente 
de herança, em cada lugar. 

Rastro de flor e estrela, 
Nuvem e mar. 
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: 
A sombra é que vai devagar.

Quadras ao gosto popular



Teus brincos dançam se voltas 

A cabeça a perguntar. 

São como andorinhas soltas 

Que inda não sabem voar.

Fernando Pessoa in Quadras ao gosto popular 

Fui eu ? de Fernando Pessoa


Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li 

O que julguei que senti. 

Releio e digo : "Fui eu ?" 

Deus sabe, porque o escreveu.


26 de dez. de 2012

A mulher sentada de João Cabral de Melo Neto


Imagem: Hammershoi - Interior 1893

Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos? 
Nuvens sob seus cabelos. 
(A visita espera na sala;
a notícia, no telefone;
a morte cresce na hora; 
a primavera, além da janela). 
Mulher sentada. Tranqüila
na sala, como se voasse.




25 de dez. de 2012

Os anjos de José Saramago

Wilton Diptych (c. 1395 – 1399)

(...) os anjos existem para tornar-nos a vida mais fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor de Jesus (...)”

fonte: O Evangelho segundo Jesus Cristo, 1991.

24 de dez. de 2012

Sophia de Mello Breyner Andresen

                                                                                                                                      foto:  António Passaporte 
Porto, 6 de Outubro 1919 - Lisboa, 2 de Julho de 2004
Havia em minha casa uma criada, chamada Laura, de quem eu gostava muito. Era uma mulher jovem, loira, muito bonita. A Laura ensinou-me a «Nau Catrineta» porque havia um primo meu mais velho a quem tinham feito aprender um poema para dizer no Natal e ela não quis que eu ficasse atrás... Mas há mais encontros, encontros fundamentais com a poesia: a recitação da Magnífica, nas noites de trovoada, por exemplo. Quando éramos um pouco mais velhos, tínhamos uma governanta que nessas noites queimava alecrim, acendia uma vela e rezava. Era um ambiente misto de religião e magia... E de certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente, uma certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da dureza da vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os pescadores no mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra.» E essa sensação dos homens, nos barcos, a lutar contra uma tempestade de que os ecos... Batiam as janelas, as portadas de madeira. Havia temporais terríveis nesse tempo! Eu vivia no Porto, para os lados do mar, num sítio chamado Campo Alegre, e chegavam-nos os ventos do mar, o vento Sul, e as portadas batiam, às vezes abria-se uma janela de par em par e tinha-se a impressão visual, dentro de casa, de um mar completamente louco, em que os barcos... E essa visão do pescador que tinha de chegar à praia e podia ser devorado pelas ondas... E ao mesmo tempo as palavras da Magnífica criavam uma espécie de espaço de salvação e de esplendor no meio do temporal, no meio do caos... 

23 de dez. de 2012

Canção do amor que chegou de Vinícius de Moraes

J.W. Waterhouse



Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente essa alegria em mim 
Alegria de viver 
Que alegria de viver 
E de ver tanta luz, tanto azul! 
Quem jamais poderia supor 
Que de um mundo que era tão triste e sem cor 
Brotaria essa flor inocente 
Chegaria esse amor de repente 
E o que era somente um vazio sem fim 
Se encheria de cores assim 
Coração, põe-te a cantar 
Canta o poema da primavera em flor 
É o amor, o amor chegou 
Chegou enfim 

Vinícius de Moraes in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"

22 de dez. de 2012

Casamento de Adélia Prado

                                             Matizes - Mandala peixes

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

   

Casa de Mario Quintana



Amar é mudar a alma de casa       

21 de dez. de 2012

Te reconheço de Livia Garcia Roza


Não estás mais. 
Mas te reconheço no vazio que deixastes.


Orquídea Bulbophyllum auratum









Sentir é preciso, mas que não é preciso viver de Fernando Pessoa



"A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substitui a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial.

Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver."

 in Livro do desassossego

Negro, preto, nero, noir, iswed, nwa, negru.












20 de dez. de 2012

A vida oblíqua é muito íntima de Clarice Lispector

Édouard Manet
A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta. E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café em um terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.
Sim. A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores em um jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva da vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio.
In: Água viva. Nova Fronteira, 1980. p. 70.

Beija-flor por Michaela Sagatova









João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)