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22 de jun. de 2014

Tomo conta do mundo :: Clarice Lispector

Starry night - Edvard Munch, 1922-1924

Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar e vejo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as águas avançaram inquietas, vejo isto pela marca que as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o céu da noite está estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez do negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral. Gosto de intensidades.


3 de jul. de 2012

Da Vocação






Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?
Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/ é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.”

fragmento de  A disciplina do amor, Lygia Fagundes Telles

23 de mar. de 2012

Ao que é temporal chamar eterno de Octavio Paz



"[...] Amamos um ser mortal como se fosse imortal. Lope disse isso melhor: ao que é temporal chamar eterno. Sim, somos mortais, somos filhos do tempo e ninguém se salva da morte. Não só sabemos que vamos morrer como a pessoa que amamos também vai morrer. Somos os joguetes do tempo e de seus acidentes: a doença e a velhice, que desfiguram o corpo e extraviam a alma. Mas o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte. Pelo amor roubamos ao tempo que nos mata umas quantas horas que transformamos, às vezes em paraíso e outras em inferno. De ambas as formas o tempo se distende e deixa de ser uma medida. Mais além da felicidade ou infelicidade, embora seja as duas coisas, o amor é intensidade; não nos presenteia com a eternidade mas sim com a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço - aqui é mais além e agora é sempre. No amor tudo é dois e tudo tende a ser um."

Paz, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994. p.117-8

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)