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10 de nov. de 2017

Parábola :: Wislawa Szymborska ( 1923 - 2012 )

 Ivan Aivazovsky

Os Pescadores tiraram uma garrafa das profundezas.
Havia nela um papel que continha as seguintes palavras:
"Acudam! Estou aqui. O oceano atirou-me para uma ilha deserta. Estou junto à água à espera de ajuda. Depressa. Estou aqui!"
- Não traz data. Por certo já é tarde. A garrafa poderia ter andado à deriva por muito tempo - disse o primeiro pescador.
- E não indicou o lugar. O oceano, pode ser um qualquer - disse o segundo pescador.
- Não é por ser tarde nem longe. A ilha Aqui pode estar em qualquer parte - disse o terceiro pescador.
Sentiram embaraço, fez-se silêncio. Com as verdades universais, é sempre assim.

6 de jul. de 2015

Retrovisor :: João Anzanello Carrascoza


John Brack

Na verdade, esse menino que narra [Aos 7 e aos 40] é um menino velho. É o homem que retorna e está se remeninando pelo seu olhar no tempo. E o personagem mais velho, que é esse cara que está aos quarenta, não é ele que narra. Apesar das situações que vive, ele é um menino que não tem domínio sobre sua vida, que está diante de um mundo que o leva para lá e para cá, que não tem ainda o domínio de suas rédeas e que não terá. É um homem com a insegurança, as dúvidas, a fragilidade e a vulnerabilidade de um menino. A gente acabou ficando com uma capa que tem tudo a ver: um automóvel, que [representa] olhar para trás para ir para frente. Às vezes é preciso olhar para trás, entender a nossa história para dar um passo adiante. E é o que a gente faz num automóvel, num retrovisor. Você precisa dele para olhar lá atrás, ver se não passou dos lugares, ou o que passou, olhar um pouquinho de novo e ver quão bonito era — mas você está indo para frente. Seu olhar, a maior parte do tempo, é para o que está vindo, para o teu presente, para o domínio da tua direção. E isso é um ir e vir do adulto e da criança. No fim, o tempo todo a gente é aquele que não cresceu e aquele crescido que ainda lembra o tempo de crescer.fonte: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/joao-anzanello-carrascoza/

2 de jul. de 2015

A Nossa Casa :: Arnaldo Antunes / Alice Ruiz / Paulo Tatit / João Bandeira / Celeste Moreau Antunes / Edith Derdik / Sueli Galdino

Stefan Caltia

Na nossa casa amor-perfeito é mato
E o teto estrelado também tem luar
A nossa casa até parece um ninho
Vem um passarinho pra nos acordar
Na nossa casa passa um rio no meio
E o nosso leito pode ser o mar

A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar

A nossa casa é de carne e osso
Não precisa esforço para namorar
A nossa casa não é sua nem minha
Não tem campainha pra nos visitar
A nossa casa tem varanda dentro
Tem um pé de vento para respirar

A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar
A nossa casa é onde a gente está
A nossa casa é em todo lugar

4 de jun. de 2015

NOSSA HISTÓRIA :: Yehuda Amichai

Andrew Wyeth
Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península.
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

tradução de Millôr Fernandes

23 de mai. de 2015

O lugar que eu quis :: Juan Rulfo


“Lá achará minha querência. O lugar que eu quis. Onde os sonhos me enfraqueceram. Meu povoado, levantado sobre a planície. Cheio de árvores e de folhas, como um cofrinho onde guardamos nossas recordações. Sentirá que ali alguém quisesse viver pela eternidade. O amanhecer; a manhã; o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Ali onde o ar muda a cor das coisas; onde se ventila a vida como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida…”
In: Pedro Páramo. 

16 de mai. de 2015

O Regresso :: Manuel António Pina (1943-2012)

Paul Cezanne

Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E como agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.

22 de abr. de 2014

1 de jan. de 2014

Um lugar, quero um lugar! de Mahmoud Darwich


«Um lugar, quero um lugar! Quero um lugar para voltar a mim mesmo, para colocar o meu papel sobre uma madeira mais dura, para escrever uma carta maior, para pregar na parede um quadro, para arrumar os meus fatos. Para te dar o meu endereço, para fazer crescer a menta, para esperar a chuva. Quem não tem um lugar também não tem estações. Poderás tu transmitir-me o cheiro do nosso Outono nas tuas cartas? Leva-me para aí, se é que ainda há um lugar para mim na miragem estagnada. Leva-me para o eflúvios de cheiros que respiro nos écrans, no papel, ao telefone... »

Trecho de "Les deux moitiés de l’orange", carta escrita durante o exílio em Paris a Samih al-Kassem, seu amigo residindo na Palestina.

15 de out. de 2013

Casa Arrumada :: Lena Gino

Casa arrumada é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante,
passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta pros amigos, filhos...
Netos, pros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia. Casa com vida é aquela que a gente arruma pra ficar com a cara da gente.

Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo pra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.


27 de dez. de 2012

Inscrição de Cecilia Meireles

Sou entre flor e nuvem, 
Estrela e mar. 
Por que havemos de ser unicamente humanos, 
Limitados em chorar? 

Não encontro caminhos 
Fáceis de andar. 
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras 
Que não sabem de água e de ar. 

E por isso levito. 
É bom deixar 
Um pouco de ternura e encanto indiferente 
de herança, em cada lugar. 

Rastro de flor e estrela, 
Nuvem e mar. 
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: 
A sombra é que vai devagar.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)