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9 de fev. de 2014

O alfabeto no parque - Adélia Prado

Charlie Spear

Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
 à fazenda da vovó que nunca existiu
 porque ela era pobre como Jó.
 Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
 quero ser feliz, isto é amarelo.
 E não consigo, isto é dor.

 Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
 pessoas dizendo entre soluços:
 «não aguento mais».

 Moro num lugar chamado globo terrestre
 onde se chora mais
 que o volume das águas denominadas mar,
 para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.

 Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
 Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.

 Imagine que uma dita roda-gigante
 propicia passeios e vertigens entre
 luzes, música, namorados em êxtase.
 Como é bom! De um lado os rapazes.
 Do outro as moças, eu louca para casar
 e dormir com meu marido no quartinho
 de uma casa antiga com soalho de tábua.

 Não há como não pensar na morte,
 entre tantas delícias, querer ser eterno.
 Sou alegre e sou triste, meio a meio.
 Levas tudo a peito, diz a minha mãe,
 dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.

 A mãe não sabe, cinema é como diria o avô:
 «cinema é gente passando.
 Viu uma vez, viu todas.»

 Com perdão da palavra, quero cair na vida.
 Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde…
 Assim escrevo: tarde. Não a palavra,
 a coisa.

8 de fev. de 2012

É perturbador mesmo, perturbador. Adélia Prado

(...) afinal, você percebe que tudo é basicamente igual. O que interessa mesmo é a tua vidinha. Porque você não tem mais que ela (risos). Você não tem mais do que as 24 horas do dia. Ninguém tem mais que isso. E é nessa experiência pequeninha, miserável, limitada, carente, que eu vou dar uma resposta ao absurdo da minha existência e do mundo. É esse microcosmo mesmo: a filinha do supermercado, a barra da calça… Não por isso que você é poeta do cotidiano ou poeta da metafísica. A metafísica está aí nessas coisas. Aquilo do (José) Ortega y Gasset (1883-1955, filósofo espanhol): “Admirar-se do que é natural é dom do filósofo.” É o dom do poeta! Todo mundo sai correndo para ver um fenômeno da natureza, sei lá o quê. Mas preocupar-se com aquilo que é absolutamente natural é a grande riqueza, aquilo que é o dado imediato da vida. E o dado imediato são nossas carências e obrigações cotidianas. Não tem nada tão grande porque tudo você pode amansar. Você nunca viu o palácio da Rainha da Inglaterra, fica lá um dia ou dois e amansa o lugar. “Só isso? Eu quero mais, eu quero mais.” Você está sempre querendo além do que você tem. E esse além é de natureza transcendente, é a fome da alma, a fome do espírito. É uma coisa impressionante porque você, limitado e finito, fala em conceitos loucos para nós que somos tão pequenos: o infinito. Infinitamente pequeno (risos). “Infinitamente pequeno” está me perturbando ultimamente (risos). Ele é perturbador mesmo, perturbador.
fonte: Revista SaraivaConteúdo – 2010

22 de mar. de 2007

Ouro de Tolo :: Raul Seixas

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73

Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome
Por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa

Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa

Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "E daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes pra conquistar
E eu não posso ficar aí parado

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos

Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco

É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal

E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social

Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)