9 de fev. de 2014

O alfabeto no parque - Adélia Prado

Charlie Spear

Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
 à fazenda da vovó que nunca existiu
 porque ela era pobre como Jó.
 Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
 quero ser feliz, isto é amarelo.
 E não consigo, isto é dor.

 Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
 pessoas dizendo entre soluços:
 «não aguento mais».

 Moro num lugar chamado globo terrestre
 onde se chora mais
 que o volume das águas denominadas mar,
 para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.

 Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
 Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.

 Imagine que uma dita roda-gigante
 propicia passeios e vertigens entre
 luzes, música, namorados em êxtase.
 Como é bom! De um lado os rapazes.
 Do outro as moças, eu louca para casar
 e dormir com meu marido no quartinho
 de uma casa antiga com soalho de tábua.

 Não há como não pensar na morte,
 entre tantas delícias, querer ser eterno.
 Sou alegre e sou triste, meio a meio.
 Levas tudo a peito, diz a minha mãe,
 dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.

 A mãe não sabe, cinema é como diria o avô:
 «cinema é gente passando.
 Viu uma vez, viu todas.»

 Com perdão da palavra, quero cair na vida.
 Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde…
 Assim escrevo: tarde. Não a palavra,
 a coisa.

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