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22 de fev. de 2014

Criança lendo de Walter Benjamim

                                                                                                                                                                                                  Bruegel


Da biblioteca da escola recebe-se um livro. Nas classes inferiores é feita uma distribuição. Só uma vez e outra ousa-se um desejo. Muitas vezes vêem-se livros cobiçosamente desejados chegar a outras mãos. Por fim, recebia-se o seu. Por uma semana estava-se inteiramente entregue ao enredo do texto, que envolvia branda e secretamente, densa e incessantemente como flocos de neve. Dentro dele se entrava com confiança sem limites. Quietude do livro que seduzia mais e mais! Cujo conteúdo nem era tão importante. Pois a leitura caía ainda no tempo em que se inventavam histórias para si próprio na cama. Seus caminhos semi-encobertos de neve a criança rastreia. Ao ler, ela mantém as orelhas tapadas; seu livro fica sobre a mesa alta demais e uma das mãos fica sempre pousada sobre a folha. Para ela as aventuras do herói são legíveis ainda no redemoinho das letras como figura e mensagem no rodopiar dos flocos. Sua respiração está no ar dos acontecimentos e todas as figuras lhe sopram. Ela está misturada entre as personagens muito mais de perto do que o adulto. É indizivelmente concernida pelo acontecer e pelas palavras trocadas e, quando se levanta, está totalmente coberta pela neve do lido.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II - Rua de mão única. p.37.

8 de jan. de 2013

"Existe algum modo de um homem ser apenas quem é?" de Orhan Pamuk

"O senhor conhece a história do grande Mevlana sobre a chave? Ontem à noite, por sorte, me veio um sonho sobre o mesmo tema. Tudo à minha volta estava branco, branco como essa neve. E então, de repente, acordei sentindo uma dor terrível, fria, gelada, no meu peito. Parecia que eu tinha uma bola de neve apertando o coração - uma bola de gelo, ou uma bola de cristal -, mas não; era a chave de diamante do grande poeta Rumi Mevlana, pousada no meu peito, em cima do coração. Peguei a chave e levantei da cama, tentando usá-la para abrir a porta do meu quarto, e ela abriu; e me vi num outro quarto onde, na cama, dormia um homem igual a mim, mas que não era eu. Pegando a chave pousada sobre o peito do homem adormecido e deixando a minha em seu lugar, abri a porta do seu quarto: e o quarto seguinte era idêntico, e o outro também, e naquele em que entrei depois vi ainda que havia sombras nesses quartos: outros fantasmas sonâmbulos como eu, todos com uma chave nas mãos. E em cada quarto uma cama, e em cada cama um homem que sonhava como eu! Percebi então que estava no mercado do Paraíso. Mas ali nada era comprado ou vendido, não havia dinheiro nem selos - só rostos e formas humanas. Se você quisesse, podia transformar-se em outra pessoa . Bastava passar o rosto escolhido sobre a face, como uma máscara, para começar uma vida nova. Mas eu sabia que a pessoa em que eu queria me transformar era a que estava no último dos mil e um quartos, mas, quando enfiei a última chave naquela última fechadura, a porta não abriu. Foi então que compreendi: a única chave capaz de abrir aquela porta era a primeira de todas, a chave que eu tinha encontrado em cima do meu peito quando acordara da primeira vez e era fria como o gelo, mas eu não tinha meio de saber onde aquela chave estaria agora ou com quem, qual era o quarto, qual a cama em que eu a deixara e, tomado de um arrependimento terrível, descobri que estava condenado a vagar, como todos os outros infelizes, de quarto em quarto, de porta em porta, trocando uma chave por outra, examinando cuidadosamente cada rosto que encontro mergulhado no sono, para todo o sempre"
fonte: Orhan Pamuk. O Livro Negro. Companhia das Letras

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)