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17 de ago. de 2020

Gosto :: Débora Siqueira Bueno


Monet

Gosto do silêncio de casa
quando estou sozinha.
Ficar só,
prazer desimpedido do ser
pejado em acanhamento.
Estimo abraços quando o afeto é natural,
limpidez amiga,
amor cristalino.
Mas não me aborrece a falta do gesto.
Respeito tempos e distâncias.
Tão bom ter ao lado
quem comigo segue,
me acompanha ou espera
nas constantes incursões 
ao anterior,
ao interior.

Gosto de pisar em cascas de sementes,
ruído crepitante
que se casa tão bem aos passos;
caminhar sobre pedras,
espaços abertos,
descobrir percursos.
Aprecio o barulho de chuva,
quer mansa ou tempestade;
e o cheiro que a anuncia
e o aroma que a sucede e permanece
de terra farta,
agradecida.
Gosto de roça, de café com broa de fubá,
de gente simples
que conversa no alpendre
e conta casos.

Na cidade experimento o anonimato
e o prazer estético;
contemplo a arquitetura.
Praças bem traçadas,
linhas retas à Le Corbusier,
curvas de Niemeyer
e os vestígios
de diferentes antigos.
Ofusca a iluminação feérica;
vou ao cinema, ao teatro, às livrarias;
saboreio
o café expresso
a vida expressa
as expressões 
dessemelhantes,
as metamorfoses.

Posta sobre a cama sou colcha de retalhos,
cores e detalhes.
No entanto gosto da vida que trilhei
e amo os espaços
onde posso respirar fundo
e abrir os braços
em abraço ao sítio
onde encontro
a experiência
de pertença.

Mas nos lugares
que me são sagrados,
em respeito profundo e reverência
descalço as sandálias e,
de joelhos,
ponho a minha alma.


10 de jan. de 2015

DISCURSO DE NOIVADO APÓS O JANTAR:: HANS MAGNUS ENZENSBERGER (Kaufbeuren, Alemanha 1929)


Este eu, um recipiente, que
desde que ninguém o abra,
parece compacto, liso
como um ovo Kinder,
quase apetitoso. Somente lá,
no interior, está escuro. Quem sabe
o que estará dentro, à tua espera.
Obsessões, sem dúvida,
hábitos enferrujados,
medos incompreensíveis,
truques em segunda mão,
desejos infantis.
Que tu a desejes ter,
a esta prenda embrulhada,
roça o milagre.

23 de out. de 2014

Caixa de fósforos :: Laura Esquível

foto: Carlos Porto
A minha avó tinha uma teoria muito interessante, dizia que embora todos nasçamos com uma caixa de fósforos no nosso interior, não os podemos acender sozinhos, precisamos (...) de oxigénio e da ajuda de uma vela. Só que neste caso o oxigénio tem de vir, por exemplo, do hálito da pessoa amada; a vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos (...). Cada pessoa tem de descobrir quais são os seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se dá quando um deles se acende é que alimenta a alma de energia.

21 de nov. de 2013

Elena Poniatowska, Prêmio Cervantes 2013

Eugene de Blaas

Você sabe, desde a minha infância estive sentada assim a esperar, sempre fui dócil, porque esperava você.
Sei que todas as mulheres aguardam.
Aguardam a vida futura, todas essas imagens forjadas na solidão, todo esse bosque que caminha na direção delas;
toda essa imensa promessa que é o homem; uma romã que de repente se abre e mostra seus grãos vermelhos, brilhantes;
uma romã como uma boca generosa de mil gomos.
Mais tarde, essas horas vividas na imaginação, feito horas reais, terão que receber peso e tamanho e aspereza.
Estamos todos - oh meu amor - tão cheios de retratos interiores, tão cheio de paisagens não vividas.




Sabes, desde mi infancia me he sentado así a esperar, siempre fui dócil, porque te esperaba. Sé que todas las mujeres aguardan. Aguardan la vida futura, todas esas imágenes forjadas en la soledad, todo ese bosque que camina hacia ellas; toda esa inmensa promesa que es el hombre; una granada que de pronto se abre y muestra sus granos rojos, lustrosos; una granada como una boca pulposa de mil gajos. Más tarde esas horas vividas en la imaginación, hechas horas reales, tendrán que cobrar peso y tamaño y crudeza. Todos estamos - oh mi amor- tan llenos de retratos interiores, tan llenos de paisajes no vividos.
 In: PoniatowskaElena. De noche vienes. Biblioteca Era. México, 1996.

15 de jan. de 2013

A primeira vez de Livia Garcia Roza




A primeira vez que você me viu disse que meu interior devia ser de um azul lindíssimo onde deviam brincar borboletas, esquilos gatos e passarinhos, onde nasciam e floresciam flores silvestres, onde o sol de verão brilhava e às vezes ofuscava, e o vento era brisa e vendaval, e as chuvas eram rápidas e limpas.... Aí seu celular tocou e você foi embora. Correndo.

16 de jan. de 2012

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)