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15 de set. de 2015

Saudade :: Mia Couto

Que saudade

tenho de nascer.
Nostalgia
de esperar por um nome
como quem volta
à casa que nunca ninguém habitou.
Não precisas da vida, poeta.
Assim falava a avó.
Deus vive por nós, sentenciava.
E regressava às orações.
A casa voltava
ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.

n: Tradutor de Chuvas. Editorial Caminho, 2011.

18 de jun. de 2015

O QUE APRENDI NAS GUERRAS :: Yehuda Amichai

O que eu aprendi nas guerras
A marchar no ritmo de braços e pernas
Como bombas bombeando um poço vazio.

A marchar numa fila e sozinho no meio,
A enterrar em travesseiros,
Colchões de penas,
O corpo de uma mulher amada.
E a gritar "mamãe"
Quando ela não pode ouvir,
E a gritar por "deus"
Quando eu não creio nele,
E mesmo que acreditasse nele,
Eu não lhe falaria sobre a guerra,
Como a uma criança não se fala
Dos horrores adultos.

Que mais eu aprendi.
Aprendi
A reservar um caminho para a retirada.
Em terras estrangeiras,
Alugar um quarto em hotel
Perto do aeroporto ou da estação de trem.
E mesmo em cerimônias nupciais
Ficar sempre de olho na pequena porta
Com o sinal "exit" em letras vermelhas.

Uma batalha começa
Como tambores rítmicos para dança e termina
Com uma "retirada ao amanhecer".
Amor proibido
Algumas vezes também começa e acaba assim.

Mas acima de tudo,
Aprendi a sabedoria da camuflagem,
Não ficar visível , não ser reconhecido,
Não me distinguir daquilo que me cerca,
Nem mesmo de quem amo.
Que pensem que sou uma moita
Ou um carneiro,
Uma árvore, a sombra de uma árvore,
Uma cerca viva, uma pedra morta,
Uma casa, o canto de uma casa.

Se eu fosse um profeta
Teria diminuído o brilho da visão
Escurecido minha fé com papel negro

E quando chegar meu tempo,
Endossarei a camuflagem de gala do meu fim:
Com branco de nuvens, bastante azul de céu
E estrelas infinitas.

 tradução: Millôr Fernandes


27 de mai. de 2015

Deus fale conosco :: Goethe


 Henri Matisse

Simplesmente não consigo compreender como é que se pode acreditar que Deus fale conosco através de livros e de histórias. Se o mundo não te revela imediatamente de que modo se relaciona contigo, se teu coração não te diz o que deves a ti próprio e aos outros, jamais o farão os livros, que na verdade só servem para dar nomes aos nossos erros. 

De: GOETHE, J.W. Wilhelm Meisters Lehrjahre. Buch VII. München: DTV, 1988.

27 de mar. de 2015

Disritmia :: Adélia Prado

Os velhos cospem sem nenhuma destreza

e os velocípedes atrapalham o trânsito no passeio.

O poeta obscuro aguarda a crítica

e lê seus versos, as três vezes por dia,

feito um monge com seu livro de horas.

A escova ficou velha e não penteia.

Neste exato momento o que interessa

são os cabelos desembaraçados.

Entre as pernas geramos e sobre isso

se falará até o fim sem que muitos entendam:

erótico é a alma.

Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,

para me sentir clemente e apaziguada.

O que entendo de Deus é sua Ira,

não tenho outra maneira de dizer.

As bolas contra a parede me desgostam,

mas os meninos riem satisfeitos.

Tarde como a de hoje, vi centenas.

Não sinto angústia, só uma espera ansiosa.

Alguma coisa vai acontecer.

não existe o destino.

Quem é premente é Deus.

In:  Poesia Reunida. Siciliano.

20 de jan. de 2014

As bênçãos de Manoel de Barros

Leonardo Varuzza 

Não tenho a anatomia de uma garça pra receber
em mim os perfumes do azul.
Mas eu recebo.
É uma bênção.
Às vezes se tenho tristeza, as andorinhas me
namoram mais de perto.
Fico enamorado.
É uma bênção.
Logo dou aos caracóis ornamentos de ouro
para que se tornem peregrinos do chão.
Eles se tornam.
É uma bênção.
Até alguém já chegou de me ver passar
a mão nos cabelos de Deus!
Eu só queria agradecer.

9 de jan. de 2014

Jorge de Lima, "Não procureis nexo naquilo ..."

Não procureis nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.

No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo 
dos que no mundo vivem sem asilo 
parecendo com eles renegados. 

Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros 
aonde aportam do mundo suas penas. 

São os que gritam quando tudo se cala,
são os que vibram de si estranhos coros 
para a fala de deus que é sua fala.

18 de nov. de 2012

Antes do nome de Adélia Prado


Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o 'de', o 'aliás',
o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)