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14 de ago. de 2022

As Mortes Sucessivas :: Adélia Prado

Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu
Me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu
Nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

28 de dez. de 2020

Para comer depois :: Adélia Prado


Matizes
Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
‘Eh bobagem!’
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.

in: Bagagem , 1976.

10 de jun. de 2019

As Palavras de Eugénio de Andrade (1923-2005)

Toyota Hokkei

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


12 de out. de 2015

Minhas vidas passadas :: Luiz Ruffato

Sou daquelas pessoas que guardam lembranças bastante remotas. Algumas, tão distanciadas, que vejo-me incapaz de identificar com exatidão em que circunstância ocorreram – se é que ocorreram. Sim, porque a memória é uma narrativa concebida a partir de recordações evocadas por cheiros, imagens, barulhos, gostos ou sensações que impregnam a pele. Ao longo da nossa história vivenciamos tantas experiências, e tão diversas, que tornaria impossível acumulá-las como sucederam. Então, para não sobrecarregarmo-nos, penduramos esses acontecimentos em fios tênues que, aos poucos, rompem-se, convertendo-se em vestígios esparramados às nossas costas.

A realidade não deixa marcas no corpo, mas impressões fugidias na mente, pois a experiência é sempre subjetiva. Por exemplo: embora filhos da mesma mãe e do mesmo pai, minha irmã e eu descrevemos personagens diferentes como pai e mãe, porque nos relacionamos com eles de maneira diversa. Além disso, a memória atualiza-se: sucedidos que tiveram determinado significado num momento ganham outra relevância no momento seguinte, porque aquele que fui não é este que sou agora. Mais ou menos como quando nos deparamos com um bom livro, cuja apreensão transmuda-se a cada nova leitura. As palavras não se modificam, mas altera-se nosso entendimento do mundo na medida em que escoa o tempo.

Como conservamos dos episódios somente fragmentos, não hesitamos em incorporar lembranças alheias para compor nossas próprias recordações. Relatos de parentes sobre nossa infância, histórias entreouvidas de amigos a respeito de suas famílias, cenas assistidas em filmes, passagens de romances, nossa imaginação, tudo serve para preencher os hiatos e dar sentido à narrativa, que, partindo da invocação de um evento concreto situado no passado, desenvolve-se como fabulação. Se selecionamos os fatos que permanecem arquivados em chaves sensoriais, se o presente contamina o passado, se incorporamos ao nosso os relatos alheios, podemos concluir que a memória, assentada em reconstruções, não contabiliza reminiscências individuais, mas experiências subjetivas. O que fomos ontem existe apenas no que somos hoje – o passado é uma invenção projetada desde o futuro, eternizado no agora.

Apenas duas fotografias cristalizaram meu rosto na infância. O retrato mais antigo exibe um rosto triste ilustrando um corpo franzino revestido de roupas pobres: calção de tecido ordinário, blusa de flanela mal enjambrada, chinelos de dedo gastos. Tenho cinco anos, estou em frente a uma casa longe do meu bairro, ao lado de um casal que desconheço, imerso na tarde fria para sempre perdida. O outro retrato revela duas crianças, uma delas, enfiada na melhor roupa domingueira, exibe os mesmos olhos melancólicos, as mesmas pernas finas, a mesma desolação. Tenho seis anos, estou num estúdio, porque é aniversário do meu colega, Teodorico – como fazíamos anos na mesma data, a mãe dele, de pena, ajuntou-me ao flagrante.

Que passado reconstruo quando avoco o instante dessas fotografias? Estou lá, admito: reconheço-me, mas estranho-me, décadas me separam de mim mesmo. Aquela criança que existiu em mim subsiste no adulto apenas como hipótese. Cada período da minha vida engendrou um indivíduo distinto, que, embora alicerçado em bases comuns, edificou sua própria história. Para reconhecer-me no que fui, reconstituo-me com o manancial de que sou estruturado hoje. Por isso, cada recordação dos dias antigos é a lembrança de uma das minhas várias vidas passadas.

fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/13/opinion

8 de set. de 2015

O PRATO AZUL-POMBINHO :: Cora Coralina

Gennine
Minha bisavó - que Deus a tenha em glória -
sempre contava e recontava
em sentidas recordações
de outros tempos
a estória de saudade
daquele prato azul-pombinho.

Era uma estória minuciosa.
Comprida, detalhada.
Sentimental.
Puxada em suspiros saudosistas
e ais presentes.
E terminava, invariavelmente,
depois do caso esmiuçado:
“- Nem gosto de lembrar disso...”
É que a estória se prendia
aos tempos idos em que vivia
minha bisavó
que fizera deles seu presente e seu futuro.

Voltando ao prato azul-pombinho
que conheci quando menina
e que deixou em mim
lembrança imperecível.
Era um prato sozinho,
último remanescente, sobrevivente,
sobra mesmo, de uma coleção,
de um aparelho antigo
de 92 peças.
Isto contava com emoção, minha bisavó,
que Deus haja.

Era um prato original,
muito grande, fora de tamanho,
um tanto oval.
Prato de centro, de antigas mesas senhoriais
de família numerosa.
De fastos de casamento e dias de batizado.

Pesado. Com duas asas por onde segurar.
Prato de bom-bocado e de mães-bentas.
De fios-de-ovos.
De receita dobrada
de grandes pudins,
recendendo a cravo,
nadando em calda.

Era, na verdade, um enlevo.
Tinha seus desenhos
em miniaturas delicadas.
Todo azul-forte,
em fundo claro
num meio-relevo.
Galhadas de árvores e flores,
estilizadas.
Um templo enfeitado de lanternas.
Figuras rotundas de entremez.
Uma ilha. Um quiosque rendilhado.
Um braço de mar.
Um pagode e um palácio chinês.
Uma ponte.
Um barco com sua coberta de seda.
Pombos sobrevoando.

Minha bisavó
traduzia com sentimento sem igual,
a lenda oriental
estampada no fundo daquele prato.
Eu era toda ouvidos.
Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca,
com todos os sentidos,
aquela estória da Princesinha Lui,
lá da China - muito longe de Goiás -
que tinha fugido do palácio, um dia,
com um plebeu do seu agrado
e se refugiado num quiosque muito lindo
com aquele a quem queria,
enquanto o velho mandarim - seu pai -
concertava, com outro mandarim de nobre casta,
detalhes complicados e cerimoniosos
do seu casamento com um príncipe todo-poderoso,
chamado Li.

Então, o velho mandarim,
que aparecia também no prato,
de rabicho e de quimono,
com gestos de espavento e cercado de aparato,
decretou que os criados do palácio
incendiassem o quiosque
onde se encontravam os fugitivos namorados.

E lá estavam no fundo do prato,
- oh, encanto da minha meninice! -
pintadinhos de azul,
uns atrás dos outros - atravessando a ponte,
com seus chapeuzinhos de bateia
e suas japoninhas largas,
cinco miniaturas de chinês.
Cada qual com sua tocha acesa
- na pintura -
para pôr fogo no quiosque
- da pintura.

Mas ao largo do mar alto
balouçava um barco altivo
com sua coberta de prata,
levando longe o casal fugitivo.

Havia, como já disse,
pombos esvoaçando.
E um deles levava, numa argolinha do pé,
mensagem da boa ama,
dando aviso a sua princesa e dama,
da vingança do velho mandarim.

Os namorados então,
na calada da noite,
passaram sorrateiros para o barco,
driblando o velho, como se diz hoje.
E era aquele barco que balouçava
no mar alto da velha China,
no fundo do prato.

Eu era curiosa para saber o final da estória.
Mas o resto, por muito que pedisse,
não contava minha bisavó.
Dali para a frente a estória era omissa.
Dizia ela - que o resto não estava no prato
nem constava do relato.
Do resto, ela não sabia.
E dava o ponto final recomendado.
“- Cuidado com esse prato!
É o último de 92.”

Devo dizer - esclarecendo,
esses 92 não foram do meu tempo.
Explicava minha bisavó
que os outros - quebrados, sumidos,
talvez roubados -
traziam outros recados, outras legendas,
prebendas de um tal Confúcio
e baladas de um vate
chamado Hipeng.

Do meu tempo só foi mesmo
aquele último
que, em raros dias de cerimônia
ou festas do Divino,
figurava na mesa em grande pompa,
carregado de doces secos, variados,
muito finos,
encimados por uma coroa
alvacenta e macia
de cocadas-de-fita.

Às vezes, ia de empréstimo
à casa da boa tia Nhorita.
E era certo no centro da mesa
de aniversário, com sua montanha
de empadas, bem tostadas.
No dia seguinte, voltava,
conduzido por um portador
que era sempre o Abdênago, preto de valor,
de alta e mútua confiança.

Voltava com muito-obrigados
e, melhor - cheinho
de doces e salgados.
Tornava a relíquia para o relicário
que no caso era um grande e velho armário,
alto e bem fechado.
- “Cuidado com o prato azul-pombinho” -
dizia minha bisavó,
cada vez que o punha de lado.

Um dia, por azar,
sem se saber, sem se esperar,
antes do salta-caminho,
partes do capeta,
fora de seu lugar, apareceu quebrado,
feito em pedaços - sim senhor -
o prato azul-pombinho.
Foi um espanto. Um torvelinho.
Exclamações. Histeria coletiva.
Um deus-nos-acuda. Um rebuliço.
Quem foi, quem não foi?...

O pessoal da casa se assanhava.
Cada qual jurava por si.
Achava seus bons álibis.
Punia pelos outros.
Se defendia com energia.
Minha bisavó teve “aquela coisa”.
(Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos tais.)
Sobreveio o flato.
Arrotando alto, por fim, até chorou...

Eu (emocionada) vendo o pranto de minha bisavó,
lembrando só
da princesinha Lui -
que já tinha passado a viver no meu inconsciente
como ser presente,
comecei a chorar
- que chorona sempre fui.

Foi o bastante para ser apontada e acusada
de ter quebrado o prato.
Chorei mais alto, na maior tristeza,
comprometendo qualquer tentativa de defesa.
De nada valeu minha fraca negativa.
Fez-se o levantamento de minha vida pregressa
de menina
e a revisão de uns tantos processos arquivados.
Tinha já quebrado - em tempos alternados,
três pratos, uma compoteira de estimação,
uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.

Meus antecedentes, até,
não eram muito bons.
Com relação a coisas quebradas
nada me abonava.
E o processo se fez, pois, à revelia da ré,
e com esta agravante:
tinha colado no meu ser magricela, de menina,
vários vocativos
adesivos, pejorativos:
inzoneira, buliçosa e malina.

Por indução e conclusão,
era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.

Reuniu-se o conselho de família
e veio a condenação à moda do tempo:
uma boa tunda de chineladas.

Aí ponderou minha bisavó
umas tantas atenuantes a meu favor.
E o castigo foi comutado
para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos
de escarmento e de lição:
trazer no pescoço por tempo indeterminado,
amarrado de um cordão,
um caco do prato quebrado.

O dito, melhor feito.
Logo se torceu no fuso
um cordão de novelão.
Encerado foi. Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito,
em forma de meia-lua.
E a modo de colar, foi posto em seu lugar,
isto é, no meu pescoço.
Ainda mais
agravada a penalidade:
proibição de chegar na porta da rua.
Era assim, antigamente.

Dizia-se aquele, um castigo atinente,
de ótima procedência. Boa coerência.
Exemplar e de alta moral.

Chorei sozinha minhas mágoas de criança.
Depois me acostumei com aquilo.
No fim, até brincava com o caco pendurado.
E foi assim que guardei
no armarinho da memória, bem guardado,
e posso contar aos meus leitores,
direitinho,
a estória, tão singela,
do prato azul-pombinho.


In: Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965

11 de jul. de 2015

Perto muito perto :: Helder Moura Pereira

 Robert Henri, 1903

Perto muito perto
Chego ao pé do limite,
o corpo cansado
traz as setas
do sono e a noite
esconde a alegria.
Onde tudo acontece
passam as imagens,
pressinto as nuvens
sobre os navios, o eco
de sons de aviso.
Como se inquieta
a cabeça tocando outra
na luz atravessada
de luzes. Chego à ponta
dos dedos, à esquina
da memória, adormeço, não
adormeço, canto
para adormecer.
Tudo parte de baixo
para a paisagem
do tecto, alegro-me
porque não é preciso
falar. O que sentes
está aí tão à vista
desaba sobre os olhos
o falso espaço
da casa. E a manhã
perde a luz
que só havia nas palavras.

             (Para não falar)

29 de jun. de 2015

AUSÊNCIA :: Wislawa Szymborska

Por pouco
e a minha mãe teria casado
com o senhor Zbigniew B. de Zduńska Wola.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez com a memória para nomes, rostos
e canções ouvidas uma só vez – melhor que a minha.
Distinguindo sem erro um pássaro do outro.
Com excelentes notas de física e química,
de polonês nem tanto,
mas escrevendo poemas às escondidas,
logo muito melhores que os meus.                      

Por pouco
e naquela mesma época meu pai teria casado
com a senhorita Jadwiga R. de Zakopane.
Se tivessem uma filha – não seria eu.
Talvez mais teimosa e intransigente.
Saltando sem medo na água funda.
Suscetível ao que comove as massas.
Vista em vários lugares ao mesmo tempo,
poucas vezes com um livro, muito mais com a bola,
jogando com meninos nos pátios e ruas.

As duas poderiam ter se encontrado
na mesma escola e na mesma classe,
mas sem afinidades,
nenhum parentesco,
e na foto da turma, bem afastadas entre si.

Fiquem aqui, meninas
– diz o fotógrafo –,
as pequenas na frente, as mais altas atrás.                
E sorrisos bonitos quando eu der o sinal.          
Verifiquem ainda,
não falta ninguém?

– Sim, senhor, estamos todas aqui.

8 de jun. de 2015

PARTES DE UM MUNDO: FRÉSIAS :: LUÍS QUINTAIS

julie ford oliver

I

Assim as deixei
ali,

frésias sobre
pedra escura,
ali,

onde
a memória
não é canção
nem sentimento,
ali,

sobre pedra
escura,

de tão densa
contra o tempo.

II

Flores brancas
sobre pedra
se acendendo.

Contra o tempo,
entrei
no pequeno bosque.

III

Reverenciaria
o tema procurado,
a enumeração
do infinito desgaste,
a forma
por polir.

IV

Frésias
sobre a campa,
invisíveis
de tanta luz.

6 de jun. de 2015

Das lembranças :: Marcel Proust

Edvard Munch
Doía-me ter de imaginá-las diferentes, pois o tempo que muda os seres não altera as figuras que deles guardamos. Nada é mais triste do que essa oposição entre a decadência das criaturas e a imarcescibilidade das lembranças do que compreendermos não ser de fato mais a mesma quem com tanto viço surge à memória, não nos ser possível, exteriormente, contemplar a que interiormente tão bela nos parece, e que não obstante almejamos rever.

 in: O tempo redescoberto. Globo, p. 244

20 de abr. de 2015

Toda saudade é uma espécie de velhice :: João Guimarães Rosa


 Joan Miro, 1925
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com outros acho que nem se misturam (…) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice. Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez esse seja o jeito de escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…”

Grande Sertão: Veredas.

16 de abr. de 2015

O PROFISSIONAL DA MEMÓRIA :: João Cabral de Melo Neto


Passeando presente dela
pelas ruas de Sevilha,
imaginou injetar-se
lembranças, como vacina,

para quando fosse dali
poder voltar a habitá-las,
uma e outras, e duplamente,
a mulher, ruas e praças.

Assim, foi entretecendo
entre ela, e Sevilha fios
de memória, para tê-las
num só e ambíguo tecido;

foi-se injetando a presença
a seu lado numa casa,
seu íntimo numa viela,
sua face numa fachada .

Mas desconvivendo delas,
longe da vida e do corpo,
viu que a tela da lembrança
se foi puindo pouco a pouco;

já não lembrava do que
se injetou em tal esquina,
que fonte o lembrava dela,
que gesto dela, qual rima.

A lembrança foi perdendo
a trama exata tecida
até um sépia diluído
de fotografia antiga.

Mas o que perdeu de exato
de outra forma recupera:
que hoje qualquer coisa de um
traz da outra sua atmosfera.

Museu de Tudo. José Olympio, 1975. 

14 de abr. de 2015

Pacto :: Maria Esther Maciel.

Daquele que amo
quero o nome, a fome
e a memória. Quero 
o agora. O dentro e o fora,
o passado e o futuro.
Quero tudo: o que falta
e o que sobra
o óbvio e o absurdo.

18 de fev. de 2015

Palavras de plantão :: Silvana Conterno

 Fernand Leger

Palavras de plantão
convenção dos dias
são soldados rasos
Quero as que preciso pescar
no rio profundo emaranhadas
arrastam outras pela memória
Não me explicam
mas, me salvam
do silêncio

11 de fev. de 2015

Short trip :: Alice Ruiz


minha cidade
cai pela janela
como um cisco

meu olho
caleidoscópio
é o coração que acolhe
fragmento por fragmento
até que toda cidade
e sua história
caiba dentro

nessa rua, por exemplo,
já passei há muito tempo
mas não tinha esse olhar
indo embora

para o futuro,
a memória desse momento
que passou agora
será a lembrança de outro
e ainda outro mais antigo

caio como um cisco
na cidade
somos, as duas,
uma rápida paisagem.
De passagem.



19 de dez. de 2014

Código :: MIREN AGUR MEABE (Leikeitio, País Basco, 1962)


Michael Tompsett

Proclamo um código alternativo:
alheio às palavras,
uma linguagem sem frases,
uma língua que não possa ser condenada à memória,
uma prosa para enganar promessas,
um dialecto mudo sem
listas de preços ou formas de denúncia,
uma fonte gratuita de significados ambíguos,
um modo de expressar tudo quanto não pode ser expresso.

 tradução de Amaia Gabantxo

2 de dez. de 2014

12 de nov. de 2014

Exploro os mistérios irracionais :: Manoel de Barros



"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Mindlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."
fonte: entrevista concedida a José Castello, do jornal "O Estado de São Paulo", em agosto de 1996, ao ser perguntado sobre qual sua rotina de poeta

8 de nov. de 2014

O corpo e a mente - Luis Fernando Veríssimo

Rene Magritte, 1935

O corpo e a mente
têm biografias separadas,
cada um sua memória própria,
seu próprio jogo de charadas.
Meu corpo tem lembranças
- cheiros, tiques, andanças -
que a mente não registrou,
e o corpo não tem as marcas
de metade do que a mente passou.

POESIA NUMA HORA DESSAS?! Rio de Janeiro: Objetiva, 2002

4 de nov. de 2014

"Um refúgio? Eduardo Galeano

"Um refúgio? Uma barriga? Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva, ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento? Temos um esplêndido passado pela frente? Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de partida".











2 de nov. de 2014

Os meus mortos :: Manuel António Pina

"Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam agora, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço."

in Por outras palavras

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)