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30 de jun. de 2016

Começo de Rui Pires Cabral

Vejo-te um pouco como se já não houvesse 
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?
Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.


9 de nov. de 2015

Bom dia, amor :: Carminho (carta de Maria José)

Gustave Caillebotte

Bom dia amor,
Dizem as rosas da janela ao ver o sol nascer
Bom dia amor,
Tal como as rosas espero sempre por te ver
E um dia há-de ser dia corra o vento para onde for
Juntam-se as rosas para me ver com o meu amor

Bom dia digo sempre quando vens
Quando passam por mim os olhos seus
E mais diria ao olhos do meu bem
Se ao menos uma vez vissem os meus
E mais diria ao olhos do meu bem
Se ao menos uma vez vissem os meus

Daqui eu digo tudo o que te vejo
A cada teu passar na minha rua
Assim é como vivo e assim te beijo
E trago esta maneira de ser tua
Assim é como vivo e assim te beijo
E trago esta maneira de ser tua


1 de out. de 2015

Dor :: Alfonsina Storni :(1892 -1938)

Nicholas Roerich 
Quisera esta tarde divina de outubro 
passear pela beira longínqua do mar; 
Que a areia de ouro, e as águas verdes, 
e os céus puros me vissem passar. 

Ser alta, soberba, perfeita, quisera, 
como uma romana, para concordar 
com as grandes ondas, e as rocas mortas 
e as largas praias que apertem o mar. 

Com o passo lento, e os olhos frios 
e a boca muda, deixar-me levar; 
ver como se rompem as ondas azuis, 
contra os granitos e não pestanejar; 
ver como as aves de rapina se comem 
os peixes pequenos e não despertar; 
pensar que puderam as frágeis barcas 
Afundar-se nas águas e não suspirar; 
Ver que se adianta a garganta ao ar, 
O homem mais belo não desejar amar… 

Perder o olhar, distraidamente, 
perde-lo e que nunca o volte a encontrar: 
E figura erguida entre céu e praia 
sentir-me o esquecimento perene do mar. 

Tradução de Maria Teresa Almeida Pina 

.............
Quisiera esta tarde divina de Octubre
pasear por la orilla lejana del mar;

que la arena de oro, y las aguas verdes,
y los cielos puros me vieran pasar.

Ser alta, soberbia, perfecta, quisiera,
como una romana, para concordar

con las grandes olas, y las rocas muertas
y las anchas playas que ciñen el mar.

Con el paso lento, y los ojos fríos
y la boca muda, dejarme llevar;

ver cómo se rompen las olas azules
contra los granitos y no parpadear;

ver cómo las aves rapaces se comen
los peces pequeños y no despertar;

pensar que pudieran las frágiles barcas
hundirse en las aguas y no suspirar;

ver que se adelanta la garganta al aire,
el hombre más bello no desear amar;

perder la mirada, distraidamente,
perderla, y que nunca la vuelva a encontrar;

y, figura erguida, entre cielo y playa,
sentirme el olvido perenne del mar.

26 de set. de 2015

Vozinha :: Patrick Holloway (Cork (Irlanda), em 1988. Vive em Porto Alegre (RS)

Teresa Lima 
Deveria existir um poema para minha vó
que não é minha vó,

Mas é a vó que eu herdei, deveria existir
um poema com ritmo e rima que

Reflete a musicalidade das
suas panelas, os batimentos

Das suas baterias. Deveria existir um poema
sobre uma guriazinha sem pais, com dias

Como páginas brancas; um poema sobre luto,
o desafio de perder tudo,

Duas vezes, casas caídas, dinheiro desfrutado
e três filhos para criar. Deveria existir

Um poema curto e divertido que fosse mostrado
antes do filme no cinema, então ela

Poderia o ler antes de dormir. Deveria existir
um poema sobre sua risada com olhos

Fechados até quando o assunto é morte. Deveria
existir um poema que mostrasse os pacotes

De felicidade que ela deixa embalados todos
os dias para nós. Deveria existir um poema

Para minha vovó.

31 de ago. de 2015

ABISMAL :: HELENA KOLODY (1912 - 2004)

Amedeo Modigliani, 1918

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.

29 de ago. de 2015

Teus Olhos São Duas Fontes :: Amália Rodrigues


Geoffrey Dabb
Teus olhos são duas fontes
Que eu queria ver chorar
Água a correr pelos montes
Que chegasse ate ao mar

Teus olhos são meus pecados
Teus olhos pecados são
Que eu mesmo d'olhos fechados
Sei aonde teus olhos estão

Teus olhos são andorinhas
Que aparecem com o calor
Meu amor vê se adivinhas
O que já sabes de cor

Teus olhos duas asinhas
Que tu bates de mansinho
Teus olhos são andorinhas
Que perderam o caminho

19 de ago. de 2015

Palavra: Adriane Garcia

Edvard Munch, 1894

Olhos
Uma cadeira não vê
Vive na mais completa escuridão
E assim, chão, quadro, teto
Nem luminária vê clarão
Mas eu, com minhas orbitais
Por onde luz atravessa
E processa
Vejo
E abrir os olhos é como
Abrir a flor
Fresca, primeira
Para o Sol
É como ter sonhado
E acordado
Com o ingresso
Na mão.

Das aparências
Achei meus óculos
Minha maneira de ver
(Não quero estar míope)
De longe, tudo pequeno
Embaralha
(Há um excesso de luz)
Astigmática, preciso um tanto
De escuro
Perto, vejo demais
Como se fosse cega.



16 de jun. de 2015

A curva dos teus olhos :: Paul Éluard

Andrew Wyeth

A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.

28 de mai. de 2015

Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda :: Fernando Pessoa

Miró
Ó meu amor! ó meu damasco, ó minha seda,
Ó meu guizo de prata,
Meu colar de pérolas deixado em cima da cómoda,
Minha aliança de ouro em dedos já velhinhos e fieis,
Minha cantiga de raparigas ao poente,
Ó meu fumo de cigarro, tão inútil e tão necessário,
Minha Bíblia para as crianças brincarem,
Minha amante que eu queria trazer ao colo como uma filha...
Olha, tenho as mãos em febre...
Tenho a testa a escaldar, tenho os olhos muito estranhos...
Todos olham para o brilho dos meus olhos e espetam-se neles...
Eu tenho febre e tenho sede e lembro-me de ti por causa disso
Porque se eu te tivesse como te quereria ter
(Não sei se é de um modo físico, ou de um modo psíquico)
Eu não teria nem febre, nem sede, nem a testa a arder,
Nem os olhos secos, muito secos, sob a fronte...
Tu não sabes o que tem sido a minha vida!...
Tu não sabes que martírio tem sido o meu...
Se tu soubesses o que é amar as coisas simples e calmas
E não ter jeito para procurar senão as outras coisas!
Se tu soubesses porque é que quando eu estou na minha quinta de dia
Tenho saudades dela como se não estivesse lá...
Se tu soubesses o que eu sinto à noite, nos hotéis, pelas ruas,
Se tu soubesses! Mas eu próprio não sei o que é que sinto...
Minha lantejoula, minha casa de bonecas,
Ó meus brinquedos da minha infância atados com cordéis!
Ó meu regimento que passa com a banda à frente,
Minha noite no circo, nos cavalinhos, a rir dos palhaços...
Ó minha (...)
s.d.
Poemas de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Edição crítica de Cleonice Berardinelli.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.  - 325.

13 de mai. de 2015

Os Amantes :: Julio Cortazar

HUNDERTWASSER, FRIEDENSREICH

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles se tomam as mãos: algo fala 
entre seus dedos, línguas doces 
lambem a úmida palma, correm pelas falanges, 
e acima a noite está cheia de olhos. 

São os amantes, sua ilha flutua à deriva 
rumo a mortes na relva, rumo a portos 
que se abrem nos lençóis. 
Tudo se desordena por entre eles,
tudo encontra seu signo escamoteado;
porém eles nem mesmo sabem
que enquanto rodam em sua amarga arena
há uma pausa na criação do nada
o tigre é um jardim que brinca.

Amanhece nos caminhões de lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre suas portas.
Os amantes cansados se fitam e se tocam
uma vez mais antes de haurir o dia.

Já estão vestidos, já se vão pela rua.
E só então,
quando estão mortos, quando estão vestidos,
é que a cidade os recupera hipócrita
e lhes impõe os seus deveres quotidianos.


Tradução de José Jeronymo Rivera

4 de mai. de 2015

Da vista e do visto ::Eucanaã Ferraz


Mais uma vez é maio; não o levaste contigo;
horas se escrevem hoje com o lápis de sempre,
ultramar e um tanto adolescente; não o levaste,
maio, mês do meu aniversário, quando a melancolia
é menos nítida que a linha dos morros e dos edifícios;

vento sol amendoeiras, é como te digo, não levaste
maio e mesmo os meus olhos estão aqui, comigo, algo,
porém, sei que se foi contigo; que coisa era, não sei,
e, ainda que pequena, faz falta, era minha; coincidência
ou não, procuro e não encontro a minha antiga alegria.

Sentimental: poemas. Companhia das Letras, 2012.

30 de abr. de 2015

Sendo quem sou, em nada me pareço :: Hilda Hilst - (1930 - 2004)

Henry Fuseli 
Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
e tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
não seria melhor ser diferente
e ter olhos a mais, visíveis, úmidos
ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.

As paisagens em ti se multiplicam
e o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
e o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
e exige posse e pranto, sal e adeus.

Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.

*            *            *

In: "Exercícios" 

13 de abr. de 2015

Nas cidades a vida é mais pequena (Alberto Caieiro / Fernando Pessoa) imagens: Lúcia Neto


Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que nossos olhos
nos podem dar
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver






26 de fev. de 2015

Eu posso ir lá fora ? :: Mario Quintana


Louisa Matthiasdottir, 1985

Oh! aquele menininho que dizia
“Fessora, eu posso ir lá fora?”
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.


QUINTANA, Mario. A vaca e o hipogrifo. São Paulo, Globo, 1995. p.51

7 de jan. de 2015

23 de dez. de 2014

UMA COISA É NECESSÁRIA :: HANS BØRLI (Noruega 1918-1989)

Claude Monet 


Uma coisa é necessária – aqui
neste nosso mundo díficil
de sem-abrigos e desterrados:

Fixares residência em ti.

Entra pela escuridão
e limpa a fuligem da lâmpada.

Para que as pessoas na estrada
possam entrever uma luz
em teus olhos habitados.

(1974)

9 de dez. de 2014

A Flor do Sonho :: Florbela Espanca



A Flor do Sonho alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…
Milagre… fantasia… ou talvez, sina…

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…

24 de nov. de 2014

Bairro Alto :: Alice Sant'Anna

J. B. Durão
bairro alto
era muito cedo na praça
do comércio: descemos
do bairro alto, o céu
de um azul que não se pinta
todo costurado com a linha
dos comboios, os trilhos dançando
debaixo dos sapatos. nossos olhos
sonolentos como pequenos
pássaros descobriam cafés, uma loja de chá
moças bonitas que cruzam a cidade
de ponta a ponta e não se espantam
com o azul de lisboa, o perfume das ruas
a distância de casa


2 de nov. de 2014

Os meus mortos :: Manuel António Pina

"Os meus mortos levaram consigo, de mim, palavras, memórias, dias, lugares, desígnios, incertezas; os seus olhos guardam para sempre o meu rosto, os seus ouvidos a minha voz. Também eu morri com eles, e também eu, o que fiquei, me perdi fora de mim. Onde quer que eles estejam agora, quem quer que sejam agora, estou, pois, junto deles. E pertencem-me, tanto quanto provavelmente eu lhes pertenço."

in Por outras palavras

8 de out. de 2014

Sobre o país donde vimos :: Ana Blandiana

Max Ernst, 1969

Vamos, falemos
do país donde vimos.
Eu venho do Verão,
uma pátria frágil
que qualquer folha,
ao cair, pode bem extinguir.
E o céu é tão cheio de estrelas
que às vezes pendem até ao chão,
e tu, aproximando-te, podes ouvir a erva
a fazer cócegas às estrelas que riem,
e são tantas as flores
que os olhos doem
deslumbrados pelo sol,
e redondos sóis pendem
de cada árvore;
Donde eu venho
falta apenas a morte
e é tanta a felicidade
que até dá para dormir.


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)