31 de jul. de 2025

O velho professor:: Wislawa Szymborska


Perguntei-lhe sobre aquele tempo

quando éramos tão jovens,

ingênuos, impetuosos, despreparados.


Um pouco disso restou, menos a juventude

-- respondeu.


Perguntei-lhe se ainda sabe com certeza

o que é bom e ruim para a humanidade.


É a mais mortal de todas as ilusões possíveis

-- respondeu.


Perguntei-lhe sobre o futuro,

se ainda o vê luminoso.


Li demasiados livros de história

-- respondeu.


Perguntei-lhe sobre a foto,

aquela da moldura, na escrivaninha.


Existiram, se foram. O irmão, o primo, a cunhada,

a mulher, a filha no colo da mulher,

o gato nos braços da filha,

a cerejeira em flor, e sobre a cerejeira

o passarinho não identificado voando.

-- respondeu.


Perguntei se lhe acontece de às vezes ser feliz.


Eu trabalho

-- respondeu.


Perguntei-lhe sobre amigos, se ainda os tem.


Alguns dos meus ex-assistentes,

que também já têm seus ex-assistentes,

a senhora Ludmila, que manda lá em casa,

alguém muito próximo, mas no estrangeiro,

duas senhoras da biblioteca, ambas sorridentes,

o pequeno Grzes que mora em frente e Marco Aurélio

-- respondeu.


Perguntei-lhe sobre o seu estado de saúde e de espírito.


Me proibiram café, vodca, cigarro,

carregar lembranças e coisas pesadas.

Tenho que fingir que não escuto

-- respondeu.


Perguntei sobre o jardim e o banco do jardim.


Quando a noite está clara, observo o céu.

Fico maravilhado de ver

quantos pontos de vista há ali

-- respondeu.



Um amor feliz.

Tradução Regina Przybycien.

27 de jul. de 2025

Estou cansado, é claro :: Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.

Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto —

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo...


E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente: eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

24-6-1935

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 78.

Lapso corrigido segundo: Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

21 de jul. de 2025

Sonho de Um Sonho :: Carlos Drummond de Andrade

Sonhei que estava sonhando

e que no meu sonho havia
um outro sonho esculpido.
Os três sonhos superpostos
dir-se-iam apenas elos
de uma infindável cadeia
de mitos organizados
em derredor de um pobre eu.
Eu que, mal de mim! sonhava.

Sonhava que no meu sonho
retinha uma zona lúcida
para concretar o fluido
como abstrair o maciço.
Sonhava que estava alerta,
e mais do que alerta, lúdico,
e receptivo, e magnético,
e em torno a mim se dispunham
possibilidades claras,
e, plástico, o ouro do tempo
vinha cingir-me e dourar-me
para todo o sempre, para
um sempre que ambicionava
mas de todo o ser temia…
Ai de mim! que mal sonhava.

Sonhei que os entes cativos
dessa livre disciplina
plenamente floresciam
permutando no universo
uma dileta substância
e um desejo apaziguado
de ser um com ser milhares,
pois o centro era eu de tudo,
como era cada um dos raios
desfechados para longe,
alcançando além da terra
ignota região lunar,
na perturbadora rota
que antigos não palmilharam
mas ficou traçada em branco
nos mais velhos portulanos
e no pó dos marinheiros
afogados em mar alto.

Sonhei que meu sonho vinha
como a realidade mesma.
Sonhei que o sonho se forma
não do que desejaríamos
ou de quanto silenciamos
em meio a ervas crescidas,
mas do que vigia e fulge
em cada ardente palavra
proferida sem malícia,
aberta como uma flor
se entreabre: radiosamente.

Sonhei que o sonho existia
não dentro, fora de nós,
e era tocá-lo e colhê-lo,
e sem demora sorvê-lo,
gastá-lo sem vão receio
de que um dia se gastara.
Sonhei certo espelho límpido
com a propriedade mágica
de refletir o melhor,
sem azedume ou frieza
por tudo que fosse obscuro,
mas antes o iluminando,
mansamente o convertendo
em fonte mesma de luz.
Obscuridade! Cansaço!
Oclusão de formas meigas!
Ó terra sobre diamantes!
Já vos libertais, sementes,
germinando à superfície
deste solo resgatado!

Sonhava, ai de mim, sonhando
que não sonhara… Mas via
na treva em frente a meu sonho,
nas paredes degradadas,
na fumaça, na impostura,
no riso mau, na inclemência,
na fúria contra os tranquilos,
na estreita clausura física,
no desamor à verdade,
na ausência de todo amor,
eu via, ai de mim, sentia
que o sonho era sonho, e falso.
 
Claro enigma. 1951.

15 de jul. de 2025

Momento :: Adélia Prado

Slobodanka Babic-Jelicic

Enquanto eu fiquei alegre,

permaneceram um bule azul com um descascado no bico,

uma garrafa de pimenta pelo meio,

um latido e um céu limpidíssimo

com recém-feitas estrelas.

Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,

constituindo o mundo pra mim, anteparo

para o que foi um acometimento:

súbito é bom ter um corpo pra rir

e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo

alegre do que triste. Melhor é ser. 

14 de jul. de 2025

O NADO NU :: ANNE SEXTON


No lado sudoeste de Capri
achamos uma grutinha desconhecida
onde não havia ninguém e
ali entramos completamente
e deixamos que nossos corpos perdessem toda
a solidão.
Tudo o que em nós era peixe
aflorou por um instante.
Os peixes de verdade não ligaram.
Não perturbamos a vida íntima deles.
Calmamente enveredamos acima
e abaixo deles, espalhando
borbulhas, balõezinhos
brancos que flutuavam
sol adentro junto do barco
onde o barqueiro italiano dormia
com o chapéu sobre o rosto.
A água tão clara que se podia
ler um livro através dela.
A água tão leve que se podia
boiar sobre os cotovelos.
Deitei-me ali como num divã
Deitei-me ali igualzinho
à Odalisca Vermelha de Matisse.
A água era minha estranha flor.
Imagine uma mulher
sem toga nem lenço
num sofá tão profundo como um túmulo.
As paredes daquela gruta
tinham todos os tons de azul e
você dizia, "Olhe! Seus olhos
estão da cor do mar. Olhe! Seus olhos
estão da cor do céu". E meus olhos
se fecharam como se estivessem
de súbito envergonhados.

5 de jul. de 2025

Confidencia :: MiaCouto

Confidência


Diz o meu nome

pronuncia-o

como se as sílabas te queimassem os lábios

sopra-o com suavidade

para que o escuro apeteça

para que se desatem os teus cabelos

para que aconteça


Porque eu cresço para ti

sou eu dentro de ti

que bebe a última gota

e te conduzo a um lugar

sem tempo nem contorno


Porque apenas para os teus olhos

sou gesto e cor

e dentro de ti

me recolho ferido

exausto dos combates

em que a mim próprio me venci


Porque a minha mão infatigável

procura o interior e o avesso

da aparência

porque o tempo em que vivo

morre de ser ontem

e é urgente inventar

outra maneira de navegar

outro rumo outro pulsar

para dar esperança aos portos

que aguardam pensativos

No húmido centro da noite

diz o meu nome

como se eu te fosse estranho

como se fosse intruso

para que eu mesmo me desconheça

e me sobressalte

quando suavemente

pronunciares o meu nome


Mia Couto

No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”

30 de jun. de 2025

Único sabor :: António Ramos Rosa

Sabor, sabor oculto,

submerso,

sabor adormecido, ó rosas, ó antes, primaveras,

sabor só abruptamente surto

na queda do sono, no fulgor de um relâmpago,

surto, submerso,

ó sabor antes da consciência, antes de tudo,

ó sabor só nascido sobre a paz última de tudo para além de tudo,

sabor da terra ainda antes dos olhos,

sabor a nascer, sabor-desejo, antes do beijo, sabor de beijo,

sabor mais lento, mais fundo, mais de dentro,

sabor a marulhar, cálido, denso, como a cor,

sabor de estar, sabor de ser,

ó tranquila degustação sem mandíbulas,

sabor de dentro como de um cheiro imemorial presente,

ó colinas esparsas, ó veios de águas sussurrantes,

somente ouvidos, nem sequer ouvidos, mas presentes, esparsos,

ó presença da terra nas pálpebras, num sabor acre da garganta,

ó estrelas, ó verdadeiras estrelas da infância,

ó sabor do escuro, do ventre, da espessura da noite,

ó profundo sono de raízes,

ó água bebida ao rés da terra, ó sono da vida,

ó som de bichos, de tudo e nada, num só obscuro silêncio,

ó terra junto a mim, ó grande e estranha terra,

ó perdida proximidade, ó perdida longinquidade,

ó enorme som de búzio do mar,

ó tranquilos jardins, ó sabor de cansaço,

ó sabor antes de mim,

ó quando eu não sabia e tudo em mim sabia,

ó noite, ó espessura, ó outra vez a noite,

outra vez esse sabor submerso, esse sabor do fundo,

esse sabor bem longe, esse sabor total,

esse sabor onde eu sinto a terra num só gosto,

esse sabor original, fonte de todo o sabor,

surto submerso,

ó único sabor.



27 de jun. de 2025

SAUDADE ::João Guimarães Rosa

Saudade

Saudade de tudo!...

Saudade, essencial e orgânica,

de horas passadas,

que eu podia viver e não vivi!...

Saudade de gente que não conheço,

de amigos nascidos noutras terras,

de almas órfãs e irmãs,

de minha gente dispersa,

que talvez até hoje ainda espere por mim...


Saudade triste do passado,

saudade gloriosa do futuro,

saudade de todos os presentes

vividos fora de mim!...


Pressa!...

Ânsia voraz de me fazer em muitos,

fome angustiosa da fusão de tudo

sede da volta final

da grande experiência:

uma só alma em um só corpo,

uma só alma-corpo,

um só,

um!...

Como quem fecha numa gota

o Oceano

afogado no fundo de si mesmo...


João Guimarães Rosa, no livro 'Magma'. Nova Fronteira

24 de jun. de 2025

Atração :: Líria Porto


Giovanni Battista Bertucci


são joão tão bonito

naquela bandeira

e eu tão aflita

entrei na fogueira


a vida era boa

tirei tal proveito

subi no seu colo

deitei no seu leito


pedi-lhe um beijo

o primeiro da fila

dos seus olhos verdes

bebi clorofila


agora meu santo

não sei de mais nada

paixão é veneno

caixão e mortalha


* líria porto

21 de jun. de 2025

Respingos :: Líria Porto

Jessie Dodingt

e quando a chuva caía

eu ia com a enxurrada

beirava rente a calçada

descia junto da flor

e ria a risada d'água

aquela alegria d'água

brincava que era a flor


mas depois sentia frio

lembrava-me então do rio

da flor que o rio levou

e os meus olhos choviam

:

eu era como a enxurrada

fui ficando poça d'água

que o tempo chorou

chorou


* líria porto

12 de jun. de 2025

Aos Namorados do Brasil :: Carlos Drummond de Andrade

Dai-me, Senhor, assistência técnica

para eu falar aos namorados do Brasil.

Será que namorado algum escuta alguém?

Adianta falar a namorados?

E será que tenho coisas a dizer-lhes

que eles não saibam, eles que transformam

a sabedoria universal em divino esquecimento?

Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,

quando perdem os olhos

para toda paisagem ,

perdem os ouvidos

para toda melodia

e só vêem, só escutam

melodia e paisagem de sua própria fabricação?


Cegos, surdos, mudos - felizes! - são os namorados

enquanto namorados. Antes, depois

são gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.

Mas quem foi namorado sabe que outra vez

voltará à sublime invalidez

que é signo de perfeição interior.

Namorado é o ser fora do tempo,

fora de obrigação e CPF,

ISS, IFP, PASEP,INPS.


Os códigos, desarmados, retrocedem

de sua porta, as multas envergonham-se

de alvejá-lo, as guerras, os tratados

internacionais encolhem o rabo

diante dele, em volta dele. O tempo,

afiando sem pausa a sua foice,

espera que o namorado desnamore

para sempre.

Mas nascem todo dia namorados

novos, renovados, inovantes,

e ninguém ganha ou perde essa batalha.


Pois namorar é destino dos humanos,

destino que regula

nossa dor, nossa doação, nosso inferno gozoso.

E quem vive, atenção:

cumpra sua obrigação de namorar,

sob pena de viver apenas na aparência.

De ser o seu cadáver itinerante.

De não ser. De estar, e nem estar.


O problema, Senhor, é como aprender, como exercer

a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,

e vai além de toda universidade.

Quem aprendeu não ensina. Quem ensina não sabe.

E o namorado só aprende, sem sentir que aprendeu,

por obra e graça de sua namorada.


A mulher antes e depois da Bíblia

é pois enciclopédia natural

ciência infusa, inconciente, infensa a testes,

fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.

Há que aprender com as mulheres

as finezas finíssimas do namoro.

O homem nasce ignorante, vive ignorante, às vezes morre

três vezes ignorante de seu coração

e da maneira de usá-lo.


Só a mulher (como explicar?)

entende certas coisas

que não são para entender. São para aspirar

como essência, ou nem assim. Elas aspiram

o segredo do mundo.


Há homens que se cansam depressa de namorar,

outros que são infiéis à namorada.

Pobre de quem não aprendeu direito,

ai de quem nunca estará maduro para aprender,

triste de quem não merecia, não merece namorar.


Pois namorar não é só juntar duas atrações

no velho estilo ou no moderno estilo,

com arrepios, murmúrios, silêncios,

caminhadas, jantares, gravações,

fins-de-semana, o carro à toda ou a 80,

lancha, piscina, dia-dos-namorados,

foto colorida, filme adoidado,,

rápido motel onde os espelhos

não guardam beijo e alma de ninguém.


Namorar é o sentido absoluto

que se esconde no gesto muito simples,

não intencional, nunca previsto,

e dá ao gesto a cor do amanhecer,

para ficar durando, perdurando,

som de cristal na concha

ou no infinito.


Namorar é além do beijo e da sintaxe,

não depende de estado ou condição.

Ser duplicado, ser complexo,

que em si mesmo se mira e se desdobra,

o namorado, a namorada

não são aquelas mesmas criaturas

que cruzamos na rua.

São outras, são estrelas remotíssimas,

fora de qualquer sistema ou situação.

A limitação terrestre, que os persegue,

tenta cobrar (inveja)

o terrível imposto de passagem:

"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!

Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada

na sola dos sapatos..."

Ou senão:

"Desiste! Foge! Esquece!"

E os fracos esquecem. Os tímidos desistem.

Fogem os covardes.

Que importa? A cada hora nascem

outros namorados para a novidade

da antiga experiência.

E inauguram cada manhã

(namoramor)

o velho, velho mundo renovado.


O velho professor:: Wislawa Szymborska

Perguntei-lhe sobre aquele tempo quando éramos tão jovens, ingênuos, impetuosos, despreparados. Um pouco disso restou, menos a juventude -- ...