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17 de out. de 2015

Sobre a exaustão das retinas :: GREGORIO DUVIVIER ( 1986)

Georges Seurat 

já não me diz nada um por do sol em cancun
e um coqueiro em alto-mar já vagou por protetores
de tela demais para me causar qualquer sensação
de bem-estar; os casais parisienses que habitam
calendários já não me dão sequer vontade
de ir a paris assim como não me comovem
mais as crianças de sebastião salgado nem
a menina que foge do ataque do napalm
e que em breve estampará cangas e biquínis;
as imagens estão gastas e não há nenhuma
que erga pontes como a palavra que.

3 de out. de 2015


O que é o cérebro humano senão um palimpsesto imenso e natural? 
Meu cérebro é um palimpsesto e o seu também, leitor. 
Inúmeras camadas de ideias, de imagens, de sentimentos caem sucessivamente sobre seu cérebro, tão docemente como a luz.
 Pareceu que cada uma 
sepultava a precedente. Mas nenhuma, na realidade,e, pereceu.

 BAUDELAIRE, Charles-Pierre. Les Paradis Artificiels. Paris: Librio, 2005, p. 113.

14 de fev. de 2015

Não tenho bens de acontecimentos :: Manoel de Barros


Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 263.

6 de nov. de 2013

Apoderava-se das minhas palavras :: Fernando Esteves Pinto


Apoderava-se das minhas palavras 
como se fossem uma toalha do seu rosto
alguns utensílios reservados para a sua vida. 
Eu escrevia casa e a casa teria de ser a defesa do nosso amor. 
Eu escrevia cama e a cama transformava-se num jogo de silêncio.
Vivia por trás da minha escrita 
como se preenchesse a alma de tudo o que não entendia.
Queria que eu mobilasse a vida só com palavras 
breves imagens que fossem o retrato do meu pensamento. 
Eu proporcionava-lhe a felicidade como um enigma
em cada palavra um sentimento formalmente virtual
depois abandonava-a com a ilusão do espaço decorativo.
.
In:  Área Afectada.  Temas Originais, 2010

28 de abr. de 2013

O fazedor de Jorge Luis Borges


Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.

BORGES, Jorge Luis. O fazedor. In: Obras completas (volume II). São Paulo: Editora Globo, 2000.

27 de abr. de 2013

Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo de Maria Gabriela Llansol

Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu poderia escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imagens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»

Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, querem ser reais,
e não morrer.

Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.

 Inquérito às quatro confidências. Relógio D´água, 1996

13 de abr. de 2012

Instantâneos diferentes do ser de Marcel Proust


Fabrice Wittner

Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante de visão, demasiado breve para que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede a deslocação que eles operavam em relação a nós.
Marcel Proust, in 'Sodoma e Gomorra'

8 de mar. de 2012

Todo mundo tem sua Madeleine de Pedro Nava

"Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura - na minha vidraça iluminada de repente! - e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído - doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo de laranja no frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol desolado das ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas dimensões, revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer." 
Baú de ossos, p. 291/292

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)