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17 de mai. de 2015

VISITAÇÕES, OU POEMA QUE SE DIZ MANSO :: Ana Luísa Amaral

Mary Stevenson Cassatt
De mansinho ela entrou, a minha filha.

A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.

Sentou-se no meu colo, de mansinho.

O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me a inspiração,
versos quase chegados, quase meus.

E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime.

12 de dez. de 2014

LUGARES COMUNS :: Ana Luísa Amaral


Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)


Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

27 de ago. de 2014

DESCULPA-ME A TERNURA :: Ana Luísa Amaral


Henri de Toulouse-Lautrec, 1894


Enternece-me pensar que estás aí
não força de trabalho desigual
nem vida à pressa
mas minha amiga.

Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio.

Não há homens-a-dias neste mundo,
mas tantas como tu,
a segurar nas mãos e no sorriso
algumas como eu.

Entraste há pouco a perguntar
se eu tinha febre
— a louça por lavar nas tuas mãos,
aspirando o cansaço dos meus ombros,
nos teus ombros o cansaço de mim
e o cansaço de ti.

Desculpa os meus silêncios,
o falar-me contigo como mais ninguém,
desculpa o tom sem pressa
— e o meu dinheiro que não chega a nada,
comprando o teu trabalho
(o teu sorriso)

11 de nov. de 2013

Outras vozes de Ana Luísa Amaral

Fechar os olhos e por dentro ecoar em passado.
Pensar «podia ter outra cor de pele, outra pelagem»
E o tempo virar-se do avesso, e entrar-se ali,
em vórtice, pelo tempo dentro.
Escolher.

Trazer cota de malha e de salitre,
ter chorado quando o porto ao longe se afastara,
milhares de milhas antes,
meses em sobressalto para trás.

As febres e tremuras durante a travessia,
a água amarga, as noites
carregadas de estrelas,
junto ao balanço do navio, um astrolábio.

Numa manhã de sol, do porto de vigia,
ver muito ao fundo, em doce oval,
a linha, quase tão longínqua como constelação.
Gritar «terra», gritar aos companheiros
ao fundo do navio, do fundo dos pulmões gritar,
e o bote depois, os remos largos,
a cama de areia e o arvoredo.

Ou trazer na cabeça penas coloridas,
conhecer só a fundo a areia branca
e o mar sem fundo, peixes pescados ao sabor dos dias,
uma língua a servir de subir a palmeiras,
a servir de caçar e contar histórias.

Moldar um arpão, começar por um osso
ou pedra e madeira,
entrelaçar o corpo da madeira, e o afiado da extremidade.
Contemplar devagar o resultado do trabalho
e da espera.
Ou a beleza. Escolher.

Trazer o fogo na mão, escondido pela pólvora,
fazer o fogo na orla da floresta.
Os risos das crianças, tocar a areia branca, tocar
a outra pele. Cruel,
o medo, vacilar entre a fome e o medo.
Ou não esco1her.

As penas coloridas sobre um elmo,
a cota de malha lançada pelo ar como uma seta,
os sons dos pássaros sobre a cabeça,
imitar os seus sons,
num lago de água doce limpar corpo e
pecados de imaginação,
sentir a noite dentro da noite,
a pele junto da pele,
imaginar um sítio sem idade.

Trocar o fogo escondido pelo fogo alerta,
o arpão pelo braço que se estende,
gritar «eis-me, vida»,
sem ouro ou pratas.
Com a prata moldar um anel
e uma bola de fogo a fingir,
e do fogo desperto fazer uma ponte a estender-se
à palmeira mais alta.

Esquecer-se do estandarte no navio,
depois partir da areia branca, nadar até ao navio,
as penas coloridas junto a si,
trazer de novo o estandarte e desmembrá-lo.
Fazer uma vela, enfeitá-la de penas,
derretidos que foram, entretanto,
sob a fogueira alta e várias noites,
elmo e cota de malha.

Serão eles a dar firmeza ao suporte da vela,
um barco novo habitado de peixes
brilhantes como estrelas.

Não eleger nem mar, nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro.


18 de set. de 2013

A verdade Histórica :: Ana Luísa Amaral



A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.

A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E  escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memórias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)

24 de nov. de 2012

Dizer-te de Ana Luísa Amaral

Dizer-te, meu amigo,
que, à uma da manhã
e desta noite,
está lindo o nevoeiro

que um manto de sossego
assim inteiro
eu desejava dar-te
- e ter comigo.

Enviava-te um frasco,
se pudesse,
fechado em carta azul,

ou por fax de sol
(não fora o medo que o sol
o desfizesse)

Assim, mando daqui
esta espessura
de cheiro muito branco
e muito belo:

um manto de ternura
dobrado num novelo,
que chegue
até aí.


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)