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27 de jun. de 2020

Por que é importante aprender a cozinhar? Clarice Reichstul




Quando eu era criança, ia à casa da minha avó uma vez por semana. Comíamos sempre a mesma comida: frango assado, cogumelos refogados, batata na manteiga e, de sobremesa, strudel de maçã (um tipo de torta) com creme de leite.
De vez em quando, tinha um peixe frito, mas o forte mesmo era esse menu descrito aí. Nunca mais comi cogumelos refogados como os da casa da minha avó, mas esses momentos que passávamos por lá são inesquecíveis (talvez porque ela deixava a gente tomar guaraná, e a minha mãe não).
Eu aprendi a cozinhar com minha avó. Primeiro foram biscoitinhos amanteigados. Ela fazia a massa e a gente ficava cortando com os cortadores de estrela. Depois foi um estrogonofe de peixe, que ela havia ensinado ao meu pai, quando ele era pequeno.
Na época, ele precisou de uma receita para uma competição de culinária no grupo de escotismo (passou anos reclamando por ter ficado em segundo lugar). O que eu não percebia naquele momento e só fui reconhecer adulta é o quanto aprender a cozinhar é libertador.
Libertador porque não dependemos de outros para ter a nossa comida, porque eu não tenho medo de receita nenhuma e porque, quando fui morar sozinha, não passei pelo aperto de comer miojo todos os dias. Eu já sabia fritar um ovo e fazer arroz. O básico.
A formação de indivíduos independentes se faz de diversas maneiras, algumas bem comuns, como pela cozinha. Como diria a mestra Nina Horta, cozinhar é um modo de se ligar.

17 de out. de 2017

Carta a Josefa, minha avó :: JOSÉ SARAMAGO

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.

fonte: No ano de 1968, José Saramago publicou no jornal A Capital, de Lisboa, a crónica Carta a Josefa, minha avó.

10 de out. de 2016

Desenho de Cecília Meireles



Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.

Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosas!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes!  - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.


                                   

18 de jun. de 2016

A Casa do Meu Avô :: Carlos Lacerda




Há uma ponta de mangueira a que os filhotes de manga imprimem movimento delicado. Ela se mexe enquanto todo o resto da massa vegetal jaz inerte. Essa fina extremidade do galho, como uma antena, tem vida própria; embora lhe venha toda a seiva das entranhas da terra ela parece autônoma, acena, acolhe, dá boas-vindas virentes. Lá estão, da flor crestada pelo frio de junho transformada em pequenos frutos, entre folhas muito macias e verdes, os sinais que a árvore me faz.

Quem disse que a esquizofrenia é uma doença do sangue teve razão. Ela baixa nas veias e neste momento me move, estuante, na direção do galho me me acena, da lua que se entranha em mim, das vigas e ripas que cercam os escombros e lhes dão vida, pois essa ruína em vias de reconstrução me diz muitos segredos, me explica, me decifra, me convida a mergulhar para sempre em seus alicerces e ali deixar meu sangue, meus ossos, as seivas todas do meu ser que começa a se cansar do esforço de viver em vão.
A Casa do Meu Avô.  p. 28-29

6 de out. de 2015

CARTA PARA JOSEFA, MINHA AVÓ :: JOSÉ SARAMAGO

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira, sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo.

És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!

É isto que eu não entendo, mas a culpa não é tua.

Carta para Josefa, minha avó, publicada por José Saramago, em 14 de Março de 1968, no jornal lisboeta A Capital.


26 de set. de 2015

Vozinha :: Patrick Holloway (Cork (Irlanda), em 1988. Vive em Porto Alegre (RS)

Teresa Lima 
Deveria existir um poema para minha vó
que não é minha vó,

Mas é a vó que eu herdei, deveria existir
um poema com ritmo e rima que

Reflete a musicalidade das
suas panelas, os batimentos

Das suas baterias. Deveria existir um poema
sobre uma guriazinha sem pais, com dias

Como páginas brancas; um poema sobre luto,
o desafio de perder tudo,

Duas vezes, casas caídas, dinheiro desfrutado
e três filhos para criar. Deveria existir

Um poema curto e divertido que fosse mostrado
antes do filme no cinema, então ela

Poderia o ler antes de dormir. Deveria existir
um poema sobre sua risada com olhos

Fechados até quando o assunto é morte. Deveria
existir um poema que mostrasse os pacotes

De felicidade que ela deixa embalados todos
os dias para nós. Deveria existir um poema

Para minha vovó.

15 de set. de 2015

Saudade :: Mia Couto

Que saudade

tenho de nascer.
Nostalgia
de esperar por um nome
como quem volta
à casa que nunca ninguém habitou.
Não precisas da vida, poeta.
Assim falava a avó.
Deus vive por nós, sentenciava.
E regressava às orações.
A casa voltava
ao ventre do silêncio
e dava vontade de nascer.
Que saudade
tenho de Deus.

n: Tradutor de Chuvas. Editorial Caminho, 2011.

20 de mar. de 2015

Cartas de Meu Avô :: Manuel Bandeira


A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.

15 de mar. de 2015

Avó de José Saramago



Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.» Assim mesmo. Eu estava lá.
[...]
Entre os bacorinhos acabados de nascer aparecia de vez em quando um ou outro mais débil que inevitavelmente sofreria com o frio da noite, sobretudo se era Inverno, que poderia ser-lhe fatal. No entanto, que eu saiba, nenhum desses animais morreu. Todas as noites, meu avô e minha avó iam buscar às pocilgas os três ou quatro bácoros mais fracos, limpavam-lhes as patas e deitavam- nos na sua própria cama. Aí dormiriam juntos, as mesmas mantas e os mesmos lençóis que cobririam os humanos cobririam também os animais, minha avó de um lado da cama, meu avô no outro, e, entre eles, três ou quatro bacorinhos que certamente julgariam estar no reino dos céus.
[...]

José Saramago em As pequenas Memórias

10 de nov. de 2014

Figos de Alice Sant'Anna


Manfred Lutzius

ouvi que minha avó 
tinha paixão 
por fruta do conde e caqui
(imagino a colher de prata
separando o gomo 
da casca vermelha)
meu avô come figos religiosamente 
empurra o miolo 
para dentro e a fruta 
de repente se desdobra 
em flor, as pontas fazem cócegas 
na língua
todo dia minha mãe
amassa um abacate de manhã
e meu pai devora umas tantas
maçãs antes de dormir

hoje acordei cedo, fui à feira
as frutas têm gosto de casa


9 de out. de 2014

Meu Avô :: Manoel de Barros

Odilon Redon

Meu avô dava grandeza ao abandono.
Era com ele que vinham os ventos a conversar
Sentava-se o velho sobre uma pedra nos fundos 
do quintal
E vinham as pombas e vinham as moscas a
conversar.
saia do fundo do quintal para dentro da
casa
E vinham os gatos a conversar com ele.
Tenho certeza que o meu avô enriquecia
a palavra abandono.
Ele ampliava a solidão dessa palavra.
e as borboletas se aproveitavam dessa
amplidão para voar mais longe.

29 de mai. de 2013

Tarapada Ray


O irmão do meu bisavô tinha um passatempo peculiar -

Costumava coleccionar penas

de diferentes pássaros

de diferentes cores, de diferentes sítios.

O seu quarto, o corredor, a escada

Estavam cheios de milhares de penas coloridas e descoloridas.


No dia da sua morte

Um pouco antes do sol nascer, de madrugada,

O irmão do meu bisavô

subiu ao telhado da sua casa

E lançou as penas para o ar da manhã.

As penas flutuaram nos raios dourados

do sol nascente.

Algumas cairam por perto.

Outras foram para longe.

Outras ainda voaram até à eternidade, pelo céu.


Não, não é possível escrever uma história

sobre este assunto

Mas algumas dessas penas continuam a voar

pelo céu.



(Versã a partir da tradução inglesa do autor reproduzida em This same sky, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbaks, Nova Iorque, 1996, p.56).

8 de mai. de 2012

As rosas de Sophia de Mello Breyner Andresen



Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.

in Dia do Mar, 1947

Sabe, se quer que lhe diga, do que eu me lembro bem, e para mim o que é importante, é os sítios onde escrevi, as situações em que escrevi. Há um poema que diz: «Quando à noite desfolho e trinco as rosas». Isto é absolutamente verdade: eu ia para o jardim da minha avó colher rosas, a minha avó já tinha morrido e era um jardim semi-abandonado, colhia camélias no Inverno e rosas na Primavera. Trazia imensas rosas para casa, havia sempre uma grande jarra cheia delas em frente da janela, no meu quarto. E depois eu desfolhava e comia as rosas, mastigava-as... No fundo era a tentativa de captar qualquer coisa a que só posso chamar a alegria do universo, qualquer coisa que floresce. 

18 de abr. de 2012

O cheiro da madeira de Marcello Mastroianni


Nas férias escolares, entre uma figuração e outra, eu passava quase todos os verões na oficina de meu pai e de meu avô - uma oficininha numa garagem pequena, com duas bancadas de carpintaria, porque os dois eram carpinteiros.
Meu pai ia embora na hora do almoço. Aí meu avô, homem de poucas palavras, dizia-me: " Varra as aparas de madeira e a serragem. As lixas, guarde-as ali. Depois, se tiver tempo, afie as ferramentas". Eu perguntava: "Mas quando é que vou comer ?"
No fundo, isso não me desagradava, porque eu admirava o trabalho daqueles dois homens, que, entre outras coisas, viviam discutindo. Meu pai dizia: "Já faz um dia que está trabalhando nessa cadeira de cozinha ! Quanto é que vai poder cobrar daquela mulher ?" E meu avô: "É minha obrigação consertá-la". Já naquele tempo, havia conflito de gerações.
Eu ficava um pouco envergonhado. Ali pelos quinze, dezesseis anos, comecei a olhar para as meninas. De vez em quando, meu avô me dizia: "Pegue a bolsa de ferramentas. Vamos consertar uma porta que não fecha mais". Na casa a que devíamos ir, talvez morasse uma garota em quem eu estivesse interessado, e chegar com aquela sacola de ferramentas seria ... Sinceramente, eu tinha vergonha.
Mas as lembranças daqueles anos são muito bonitas. O cheiro da madeira, por exemplo. Quem não o conhece não pode imaginar quanto é bom. O cheiro de madeira misturado ao suor de meu pai e de meu avô, aos impropérios, às cuspidas de vovô, que fumava cachimbo. Acho que aprendi muita coisa com aquelas experiências - certa percepção das coisas simples, certa humildade.
in: Mastroianni, Marcello. Eu me lembro, sim, eu me lembro. DBA, 1999. p. 95.

15 de jan. de 2007

Não Sei Para Que Me Morreste Porque É Inútil :: João Bosco da Silva

Não sei para que me morreste porque é inútil

Não sei para que me morreste, mas também nunca percebi a morte, ou a vida, para quê uma se

A outra está para reduzir tudo a nada, nem cinzas, e os ossos anónimos não fosse o nome sobre

O qual as lágrimas dos que ficaram a ser menos e cada vez menos, não sei para que me morreste,

A égua já deve estranhar a tua ausência, porque hoje não é Domingo e tu de gravata, deitado, a estas

Horas, sem teres bebido gota de vinho e quero acreditar que por isso tão sossegado, não sei onde

Irei depois da festa do Verão amanhecer, agora que a carroça ficará de pernas para o ar e a madeira

Desistirá e cederá todos os anos que aguentou, ao caruncho e os melões ficarão a apodrecer, a vinha

Morrerá de sede do teu suor e o teu vinho não voltará a encher aquela caneca que parecia ir ficar

Pela eternidade fora em cima da lareira, do teu lado pelas noites frias fora, dos rigorosos Invernos

Da terra esquecida pelo país a que dizem que pertence, não sei para que me morreste, mas desculpa

Contrariar-te e roubar um pouco de ti que guardarei até eu morrer para os outros, podes fechar os

Olhos, podes não voltar a contar-me com orgulho a história do jogo da sardinha, que fui eu

Que escrevi nos teus olhos que não sabiam ler, junto à mesma lareira, podes não voltar a fazer batota

Na bisca dos nove, podes esquecer-te de mim, obrigado, eu sei como funcionam as sinapses e é

Na sua união que vive a alma, podes morrer-me, mas prometo-te e que me desculpe a morte,

Que os raios partam, que nunca te deixarei morrer de todo, não enquanto nas minhas veias correr

O teu sangue, não enquanto o dia me permitir acordar e ter saudades tuas, sentado debaixo daquela

Macieira, enquanto as vacas pastavam, com um pedaço de cortiça e uma faca nas mãos,

Com o teu ar de eternidade, as tuas mãos de raiz de castanheiro e cepa e da cortiça dois

Bois e eu convencido que era o neto de um deus real, por isso perdoo o teu coração humano, cansado

Pelos anos, calejado pelos dias, não sei para que me morreste, porque é inútil, nunca me morrerás.


João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)