Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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9 de fev. de 2021
30 de set. de 2017
GARY BUNT (1957, East Peckham, Kent, Inglaterra)
Subnutrido de beleza, meu cachorro-poema vai farejando poesia em tudo,
pois nunca se sabe quanto tesouro andará desperdiçado por aí...
Quanto filhotinho de estrela atirado no lixo!
Mario Quintana
24 de ago. de 2016
O nome do cão - Manuel Pina
Robert E. Wood
O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.
E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
Então sonhava
o sonho sólido em que existia.
E não compreendia.
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: "É a vida..."
28 de out. de 2015
JONAS :: TOMAŽ ŠALAMUN (Zagreb,Croácia, 1941 - 2014)
Arkhip Kuindzhi
como o sol se põe?
como a neve
qual é a cor do mar?
grande
Jonas, você é salgado?
sou salgado
Jonas, você é uma bandeira?
sou uma bandeira
Os vaga-lumes descansam agora
como são as pedras?
verdes
e como os cachorrinhos brincam?
como flores
Jonas, você é um peixe?
sou um peixe
Jonas, você é um ouriço do mar?
sou um ouriço do mar,
ouça a corrente
Jonas é a cerva que corre pelo bosque
Jonas é a montanha que respira
Jonas é todas as casas
você já ouviu tal arco-íris?
como é o orvalho?
você está dormindo?
tradução de Flávio Britto
2 de mar. de 2015
Infância :: Helena Kolody
Anita Malfatti
Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!
Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.
A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...
O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.
Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.
Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.
Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!
No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)
Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...
Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!
in A Sombra no Rio, 1951)
26 de fev. de 2015
Eu posso ir lá fora ? :: Mario Quintana
Louisa Matthiasdottir, 1985
Oh! aquele menininho que dizia
“Fessora, eu posso ir lá fora?”
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.
QUINTANA, Mario. A vaca e o hipogrifo. São Paulo, Globo, 1995. p.51
28 de nov. de 2012
O Sapo - Débora Siqueira Bueno
Aos pés da Serra do Sapo
um lugar perdido,
por assim dizer, nenhum,
traz o mesmo nome:
Sapo.
Nem gastou poesia
para o batizado –
o batráquio feio,
córrego qualquer
é o seu padrinho.
De lá se avista a serra,
dita do Sapo,
crivada de estacas
que vão, buliçosas,
sondar seu interno.
Lá havia ouro,
diziam escravos,
mas braços miúdos
de força pequena
não foram buscá-lo.
Aos pés da Serra do Sapo
a pequena vila,
de tão pobre,
quase dói.
O gado esquálido pasta
a grama murcha e seca
no entorno da capela,
que a Companhia
prometeu cobrir
com novo telhado.
São andaimes toscos
nos quais se equilibram
homens murchos, secos,
que vão consertando
a capela onde
nem sabem se um dia
poderão rezar.
Se estarão vivos
ou, não é bem certo,
capela haverá.
Na vila do Sapo,
novo movimento
levanta a poeira
vermelha e grudenta.
Logo toldará
o brilho prateado,
pois nessa beirada
perdida do mundo
inda existe quem
areie as panelas.
A Companhia promete
caminhão pipa
pra lavar as ruas,
assentar poeiras,
descansar os homens
da vista do pó,
descansar a vista
do que está por vir –
rês de matadouro,
não se olha o olho.
Ao lugar chamado
Sapo
foi determinada,
com muita discrição,
morte inexorável:
sua terra será levada.
Serra tão erma,
gente tão órfã,
poucos prantearão
sua agonia.
Lentamente será aberta
a redondez da montanha.
Feita a incisão,
interior exposto,
virão os abutres,
urubus enormes,
prontos pra comer
com voracidade
todo o conteúdo
daquela barriga.
Talvez mesmo a serra
cedesse, bom grado,
parte do seu ventre.
Não terá tal chance.
Separada em partes,
toda esquartejada,
os seus intestinos
virarão pedaços
que viajarão
pra esse mundão de Deus.
O Sapo e sua serra
aguardam
a execução da sentença.
Homens, bois, cães
sonolentos,
senhoras, crianças, latas
reluzentes –
todos irão embora.
Tomarão seu rumo,
buscarão a vida;
não cria raízes
chão que esfarinha.
Montanhas esvaeceram
qual fossem levadas
pela ação do tempo.
Mas assim morreram, de
morte matada:
Serra da Pedra Grande,
Serra do Curral,
Pico do Cauê.
Assiste-se agora
à morte anunciada:
a Serra do Sapo
tornará buraco.
15 de nov. de 2012
19 de out. de 2012
Contato com a vida animal de Clarice Lispector
Clarice Lispector e Ulisses
Ter contato com a vida animal é indispensável à minha saúde psíquica. Meu cão me revigora toda. Sem falar que dorme às vezes aos meus pés enchendo o quarto da cálida vida úmida. O meu cão me ensina a viver. Ele só fica “sendo”. “Ser” é a sua atividade. E ser é minha mais profunda intimidade.
fonte: Um Sopro de Vida. p. 59
2 de ago. de 2012
Soneto acompanhado de Glauco Mattoso
Bassês não são eternos, nem são nossa
melhor ou mais completa companhia...
mas unem gênio, graça e raça à esguia
salsicha, à pata torta, curta e grossa.
Do Chicho, meu bassê, não há quem possa
dizer que outro mais fofo e vivo havia.
Dá dó seu triste olhar, que o meu copia.
Tem charme e classe até quando se coça.
Depois dalgum convívio, conversamos
na mesma língua, e a bom entendedor
bastava um "au", sem teimas nem reclamos.
Sabia estar nos olhos minha dor,
e sei que os dois estávamos e estamos
no mesmo barco, e irei pronde ele for.
de: Animalesca escolha, de Glauco Mattoso
28 de fev. de 2012
Investigações de um cão de Franz Kafka
Andrew Wyeth
Todo o conhecimento, a totalidade de todas as perguntas e respostas, está contida no cão.
As minhas interrogações servem apenas de aguilhão para mim mesmo. Só quero ser estimulado pelo silêncio que se ergue à minha volta como resposta derradeira. «Até quando conseguirás suportar o facto de que o mundo dos cães, tal como demonstram cada vez com mais evidência as tuas pesquisas, está para sempre votado ao silêncio? Até quando conseguirás suportar esta ideia?» Esta, esta é que é a verdadeira grande interrogação da minha vida, uma interrogação perante a qual as outras interrogações se tornam totalmente insignificantes. Uma interrogação que diz respeito apenas a nós próprios e a mais ninguém. Infelizmente, posso responder a esta interrogação com mais facilidade do que às interrogações específicas: aguentarei, provavelmente, até ao meu fim natural. A serenidade da velhice irá formando uma resistência cada vez maior a todas as interrogações inquietantes. Tudo indica que hei-de morrer em silêncio e rodeado de silêncio, na verdade até de forma específica, e antevejo isso com uma certa tranquilidade. Um coração admiravelmente resistente, pulmões que é impossível ficarem fracos prematuramente, foram-nos dados a nós, cães, como que por ironia. Assim, sobrevivemos a todas as interrogações, inclusive àquelas que colocamos a nós próprios, como autênticas fortalezas de silêncio que somos.
Franz Kafka, "Investigações de um cão"
14 de fev. de 2012
TENTAÇÃO de Clarice Lispector
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade
das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as
pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de
sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no
ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço
a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado
na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras,
desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de
morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia
futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto
ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a
salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um
amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se
aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade
de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e
encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua
fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele
trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro.
A menina abriu os
olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua
vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres
que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que
viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela
olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande
soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima
do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos
eram curtos, vermelhos.
Que foi que se
disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não
havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com
urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta
vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança
vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de
tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva
carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um
instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se
pediam.
Mas ambos eram
comprometidos.
Ela com sua
infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse
uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava
impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e
saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez
que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal
acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra
esquina.
Mas ele foi mais
forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás
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Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira.
Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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