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12 de abr. de 2015

Plantar um bosque :: Lya Luft

(...) O Bosque existe: é um dos meus lugares mágicos, onde minha imaginação anda de mãos dadas com a realidade. Ainda somos poucos moradores nesse condomínio na serra, mas algumas casas novas vão aparecendo entre as árvores. A nossa, a menor de todas, foi feita como a gente queria: telhado pontudo, portas e venezianas no que chamo de azul-grego. varandona, lareira e aconchego, grandes vidraças trazendo o bosque para dentro dos quartos.
      Eu a batizei de Casa da Bruxa Boa, e mandei botar isso numa placa ao lado do acesso para o carro. E, cada vez que seus telhados e suas venezianas azuis aparecem na curva da ruazinha quando chegamos, ainda me espanta que seja nossa. Nela acontecem coisas especiais.
Como quando meu marido resolveu tocar um Mozart alto e bom som no meio de uma manhã de domingo. Nem tucanos nem bugios, nem uma raposinha, nossos eventuais companheiros. Éramos as árvores e nós: troncos subindo com dificuldade como velhinhas encurvadas ou amantes sensuais. Comentei que certamente era a primeira vez que aquela mata tão antiga escutava música. Meu marido concordou balançando a cabeça. Nem lhe ocorreu dizer que árvores não escutam. Pois quem me diz que árvores, sendo vivas, não sentem nada, nem ouvem, nem enxergam — ainda que do jeito delas, que não entendemos ainda?
      Quem me diz que, compadecidas com estes atrapalhados humanos, não nos concedem de propósito essa renovadora paz que recuperamos depois do grande cansaço de quem chega da cidade arrastando deveres, compromissos, fracassos e desilusões? Quem me garante que entre os troncos não se escondem seres de fábula, que nos espiam de noite quando tudo parece dormir, mas aqui e ali alguma coisa se move, rápida? Algo vivo se esgueira, corre com pezinhos como de minúsculos esquilos no telhado — mas não são esquilos, e macacos não andam por aí de noite. Pois eu, em tantas noites quietas, escuto neste mato, neste telhado e neste jardim muitas insólitas coisas: mesmo sem nome nem rosto, elas são reais. Batem asas! sussurram, dão risadinhas divertindo-se com minha incapacidade de enxergar melhor o que não cabe em explicações.
      Essas franjas do perceptível permitem que a gente cumpra o cotidiano de trabalhos e correrias, amores a cuidar, contas a pagar, o dinheiro escasso, a burocracia implacável e kafkiana, o carro que precisa ir para a oficina e a eterna lista do supermercado ao lado do computador tudo isso e muito mais, mas sem perder a graça.  E, quando a perdemos — ou ela nos escapa —, a lembrança daqueles tons de verde, um colorido fugaz na sombra entre as raízes, os pássaros estranhos que vêm comer frutinhas, tudo isso a traz de volta. Como as vozes das crianças nos balanços quando nos visitam, seu olhar sonado quando descem a escada ainda em suas roupas de dormir, e vem para o nosso colo. Toda a graça, a delicadeza, o consolo e o assombro deste mundo tantas vezes frio e cruel retornam, e nos fazem companhia por mais cansado, aborrecido ou desanimado que a gente esteja – porque às vezes a gente também fica assim.
      E, quando resolvi transcrever nesta coluna parte do meu texto sobre o Bosque, pensei que cada um de nós pudesse curtir essa experiência, na paisagem da janela, ainda que uma frestinha de verde entre edifícios; numa caminhada pela praça ou parque; numa viagem de ônibus; ou, melhor ainda, inventar o seu. Plantar um bosque na alma, e curtir a sombra, o vento, a chuva, as crianças, o sossego. Não precisam ser reais. Eu até acho que a realidade não existe: existe o que nós criamos, sentimos, vemos ou simplesmente imaginamos. E é isso que torna a vida suportável. Ou especial.
Fonte: Revista Veja, 27 de abril de 2011

29 de jun. de 2014

Não sou areia :: Lya Luft

Botticelli
Não sou areia 
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
não sou apenas a pedra que rola
na marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

8 de jun. de 2013

Secreta Mirada de Lya Luft


 O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superados, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura. Às vezes é preciso recolher-se.

fonte: Lya Luft. Secreta Mirada. Record, 2005.

17 de nov. de 2012

Canção na Plenitude - Lya Luft

Julie Paschkis

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
buscar te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

LUFT, Lya. Secreta Mirada. SP: Editora Mandarim, 1997.

19 de set. de 2012

Diante de uma dor pessoal de Lya Luft

Não escrevo muito sobre a morte: na verdade ela é que escreve sobre nós - desde que nascemos vai elaborando o roteiro de nossa vida. O medo de perder o que se ama faz com que avaliemos melhor muitas coisas. Assim como a doença nos leva a apreciar o que antes achávamos banal e desimportante, diante de uma dor pessoal compreendemos o valor de afetos e interesses que até então pareciam apenas naturais: nós os merecíamos, só isso. Eram parte de nós.

fonte: Lya Luft. Secreta Mirada. Record, 2005.

16 de fev. de 2012

Receita de casa de Lya Luft


Matisse - collioure interior (1906)

Uma casa deve ter varandas
para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos
e a ambivalência.

Um amor precisa espaço de voar,
liberdade para querer ficar,
alegria, e algum desassossego 
contra o tédio. 

Não se esqueçam os danos a cobrir,
o medo de partir, e o dom de surpreender
- que é a sua essência.


In Para Não Dizer Adeus

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)