28 de mai. de 2020

Madeira-de-sonho :: Adrienne Rich

Na madeira velha, baratucha, riscada, da mesinha da máquina de escrever
há uma paisagem, feita de veios, que só uma criança pode ver
ou o eu mais velho da criança,
uma mulher sonhando quando devia estar a bater à máquina
o último relatório do dia. Se isto fosse um mapa,
pensa ela, um mapa decretado para memorizar
podendo ela talvez percorrê-lo, ele mostra
cordilheira atrás de cordilheira esbatendo-se no deserto nebulento,
aqui e além um sinal de aquíferos
e um possível bebedouro. Se isto fosse um mapa
seria o mapa da última idade da sua vida,
não um mapa de escolhas mas um mapa de variações
sobre a escolha maior. Seria o mapa pelo qual
ela poderia ver o fim das escolhas turísticas,
de distâncias azuladas e arroxeadas de romantismo,
pelo qual ela reconheceria que a poesia
não é revolução mas uma forma de saber
por que tem de vir a revolução. Se esta mesinha de madeira baratucha,
produzida em massa, vinda da Companhia de Gás de Brooklyn,
produzida em massa porém duradoura, presente agora aqui,
é o que é porém um mapa-de-sonho
tão renitente, tão simples,
pensa ela, o material e o sonho podem juntar-se
e isso é o poema e isso é o relatório retardatário.
Traduzido por Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade.
Uma Paciência Selvagem. Editora Cotovia, 2008.

25 de mai. de 2020

Balanço de Débora Siqueira Bueno


L'Etang, c.1796-1875 Jean-Baptiste-Camille Corot 

E aqui estou eu, cansada,
apenas por ter tomado um simples banho.
A alma já estava lavada
das culpas de tempos idos;
o que não quer dizer, de resto,
que tudo tenha sido perdoado.
Minha natureza não permite
o apagamento de alguns dos itens
encarnados na coluna de débitos.
Por vezes impera em mim um fremor de acertos
e quero porque quero a juventude perdida.
Depois amanso, bovina,
remastigo sem amargor o que foi mágoa,
e os restos do viver
não mais me assombram.

11 de mai. de 2020

Casa antiga :: Cecilia Meireles

Forrarei tua casa já tão antiga
Com um papel que imita as paredes de tijolo.
Ficará tão lindo como se estivéssemos na Holanda.

Forrarei tua casa assim, mas por dentro,
De modo que, longe de todas as vistas,
Será como se estivéssemos ao ar livre, no jardim.

E deixarei uma parede quebrada ? não uma porta, não uma janela:
Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira
Carregado de flores e vespas.

Parecerá que estamos sonhando,
E estamos sonhando mesmo,
E parecerá que estamos vivendo,
E a vida não é mesmo um sonho impossível?

4 de mai. de 2020

O Haver :: Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe. 

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza 
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história. 

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa 
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa 
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade 
De aceitá-la tal como é, e essa visão 
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

15/04/1962


Jardim Noturno: poemas inéditos.  Companhia das Letras - São Paulo, 1993. p. 17.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)