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2 de mai. de 2013

A velhice de Leonardo Boff

Henri Matisse, 1939. foto de Gyula Halasz

Ao completar 70 anos, Boff escreveu um texto intitulado Oficialmente velho, no qual comenta o que é a velhice:

[...] A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino.

Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.

A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. (...) A velhice é uma exigência do homem interior. 

Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.

BOFF, Leonardo. Oficialmente velho. 2008. Disponível em:

10 de jun. de 2012

As coisas, os outros e os escombros de Contardo Calligaris


1) Os amigos que encontro, nesta volta de viagem, querem saber do terremoto na Itália. Como foi? O que pensei e senti? Pois é, o terremoto não me inspirou pensamentos sobre a fragilidade da existência e a força da natureza -ou outro lugar-comum que valha.
Na hora, só tive iniciativas práticas. Como já contei, logo no primeiro tremor, juntei numa pasta passaportes, bilhetes de avião e carteiras. Nos dias seguintes, me deslocava sempre com esses apetrechos e, de noite, deixava ao lado da cama uma bolsa que continha a tal pasta mais o necessário para que a gente, pulando da cama para a rua, aguentasse o frio e a chuva.
Será que eu me preocupava com nossa mobilidade, ou seja, com a possibilidade de irmos embora sem burocracia, em caso de catástrofe? Ou será que me preocupava em termos constantemente conosco uma prova de nossa identidade?
2) Na madrugada do primeiro tremor, no dia 20, fiquei acordado até a luz do dia, para não ser surpreendido por eventuais tremores de assentamento. Passei o tempo olhando para as coisas ao meu redor.
Nos 60 anos em que meus pais mantiveram um apartamento em Veneza, eles abarrotaram seu espaço: nada de grande valor (afinal, o lugar fica desocupado durante boa parte do ano), mas muitos objetos carregados de história familiar, marcados pelas mãos e pelos olhares dos meus pais, avós ou bisavós. De cada objeto que considerei, tentei me contar a história: de onde vinha? De quem fora? Como chegara até lá?
Talvez o livro mais bonito e tocante que li nos últimos meses tenha sido "A Lebre com Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca).
É a história de uma família, narrada, por assim dizer, por uma coleção de miniaturas japonesas que passa, ao longo de quase dois séculos (cheios de fúria e guerras), de mão em mão, de país em país e de um continente a outro.
Sem dúvida, há objetos que são melhores sedimentos da história do que outros. Uma miniatura japonesa, por exemplo, já nasce como vestígio da história de quem a entalhou -às vezes, meses ou anos a fio.
Mas, no fundo, qualquer objeto, até um artefato industrial, tenta contar sua história. Qualquer mercadoria pode nos falar do trabalho de quem a produziu e dos desejos dos que a compraram, perderam ou trocaram. O que acontece, em geral, é que a gente não se dá o tempo de escutar.
Logo na região devastada pelo terremoto, nos claustros de San Pietro, em Reggio Emilia, está aberta até outubro (tremores permitindo) a exposição "Gli Oggetti ci Parlano" (os objetos falam conosco). Uma busca on-line explica a iniciativa e permite ver, em vídeo, partes da mostra: os cidadãos de Reggio foram convidados a emprestar objetos pessoais que tivessem, para eles, uma história significativa -a qual eles contam em depoimentos filmados.
3) Parêntese: já na primeira noite, lembrei-me de uma recomendação de meu pai, com sua sabedoria de clandestino procurado por fascistas e nazistas: "Se você fugir, não volte atrás". E ele agregava exemplos de resistentes que fugiram a tempo, mas quiseram voltar, rapidamente, para pegar algo que tinham esquecido ou mesmo só para olhar sua casa pela última vez -e foram presos.
Confirmando o conselho de meu pai, no segundo terremoto, o do dia 29, morreu o padre Martini, em Rovereto; ele voltou para a igreja de Santa Caterina, já periclitante desde o dia 20 -só um instante, para recuperar uma imagem santa. Entrou exatamente na hora do tremor das nove da manhã.
4) Passei minha infância brincando e fuçando nos escombros (de bombardeios aéreos, não de terremotos, claro). Imagino que, se minha casa fosse demolida, mesmo se não houvesse vítimas, eu ficaria, mexendo no entulho -mas à procura do quê? De uma jarra de prata que não se amassou além da conta, de uma cerâmica que não quebrou, de um livro que sobreviveu?
É fácil dizer que tanto faz, "deixa para lá: o passado está na gente, na nossa lembrança". Fácil e um pouco falso: nossa identidade é sempre dispersa aos quatro ventos. Ela está nas pedras, nas coisas e nos outros.
A clínica constata que as vítimas das grandes catástrofes, quando erram pelos entulhos, entre corpos e restos, não sabem mais direito quem elas são. O que elas procuram é sua própria identidade, que estava nas coisas, nas pedras e nos outros que se perderam.

1 de mar. de 2007

Minhas águas :: Silvana Conterno

Neil Welliver, 1984

As vezes comporto
me faço represa
nem sempre consigo 
conter minhas águas
Me escapam desejos
que seguem caminhos
contornam obstáculos
inundam planícies
e regiões habitadas
então me recolho
fazendo o rescaldo
salvando entre pertences
a identidade avariada

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)