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24 de ago. de 2020

O viajante de Juan Bonilla



Ali de onde venho ninguém me retinha.
Sei que ninguém me espera aí para onde vou.

Pela janela desfilam imóveis as paisagens.
Seria maravilhoso não chegar a sítio nenhum.

Permanecer assim:
viajando de um lugar que já não existe
para outro que nunca existirá.

(poema incluído em Defensa personal (Antología poética 1992-2006), prólogo de Miguel Albero, Ranacimiento, Sevilha, 2009, p. 155).

24 de jan. de 2018

Viajantes de Baudelaire

Carte postale "17e courrier par Ballon - Wien 1957"



Mas viajantes de fato apenas são aqueles
Que partem por partir; o coração flutuante,
Jamais hão de aceitar ser outros senão eles
E, sem saber por quê, ordenam sempre: Adiante!

outra versão 

Mas os verdadeiros viajantes são só aqueles que partem
Por partir; corações leves, semelhantes a balões,
Jamais se separam de seu destino,
E, sem saber por que, dizem sempre: Vamos!

.........................

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent 
Pour partir, coeurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s'écartent,
Et, sans savoir pourquoi, disent toujours : Allons !
................................

But the true voyagers are only those who leave
Just to be leaving; hearts light, like balloons,
They never turn aside from their fatality
And without knowing why they always say: "Let's go!”



30 de set. de 2016

Dez coisas que fazem a vida valer a pena de Rubem Braga



Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.


Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.


Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.

Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.


Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.


Viajar, partir…


Voltar.

Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio

Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.


fonte: As Boas Coisas da Vida. Record, 1988,

23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

3 de jun. de 2015

Estrada : Rui Knopfli

Renoir 
Súbito apercebo-me:
Segue a viagem dos anos.
Passou o tempo das amoras
e das laranjas furtadas,
a flor da chuva de ouro
para sugar o gostinho a açúcar.

Sonho com uma comprida paisagem de cedros
que nunca vi.
Apetece-me deixar o corpo adormecido
junto ao rádio
e ir passear pelos galhos das árvores
e sobre os fios telefónicos.

Nada feito,
pesada de agruras e desertos
segue a viagem dos anos.

19 de fev. de 2015

Não é ainda a pele, apenas :: Maria do Rosário Pedreira nasceu (Lisboa, 1959)

Berthe Morisot

Não é ainda a pele, apenas
um rumor de lã nas camisolas, um recado
a lembrar tardes no feno, linho lavado, o sol
mordendo um rio pela manhã ―
assim a distância entre a minha mão e o pessegueiro.

Na estrada
as flores demoram-se até às laranjas,
mas o aroma do pomar faz sede e os olhos cegam
na promessa de gomos novos e doces, os mais doces. Talvez
por isso se continue a viagem sem olhar para trás.

25 de jan. de 2015

13 de out. de 2014

RECONHECIMENTO À LOUCURA :: Almada Negreiros


Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto do Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem nem resignação
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira para tudo?
Tu só loucura és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.



26 de ago. de 2014

Viajar ! Fernando Pessoa

Koshiro Onchi

Viajar! Perder países!
Ser outro constantemente,
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto é só terra e céu.


Poesias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  p. 182.

17 de jul. de 2014

Viagem - Paulo Leminski

Paul Delvaux, 1957 
“essa vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem”

Paulo Leminski, morreu aos 44 anos.

18 de mai. de 2014

O bonde abre a viagem :: Mário de Andrade

CARLHEINZ HAHMANN
O bonde abre a viagem,
    No banco ninguém,
     Estou só, stou sem.

    Depois sobe um homem,
    No banco sentou,
    Companheiro vou.
    O bonde está cheio,
    De novo porém
    Não sou mais ninguém.

LIRA PAULISTANA. 1944.

14 de mai. de 2014

Pinguinho de tinta de Toquinho

Leon Chiver
Se um pinguinho de tinta
Cai num pedacinho
Azul do papel
Num instante imagino
Uma linda gaivota
A voar no céu...
Vai voando
Contornando a imensa
Curva Norte e Sul
Vou com ela
Viajando Havaí
Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela
Brando navegando
É tanto céu e mar
Num beijo azul...
Entre as nuvens
Vem surgindo um lindo
Avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo
Com suas luzes a piscar...
Basta imaginar e ele está
Partindo, sereno e lindo
Se a gente quiser
Ele vai pousar...

Toquinho in Aquarela 

1 de out. de 2013

A literatura é uma viagem contínua de Cladio Magris



Gabriel Metsu


A literatura é uma viagem contínua entre a escrita diurna, em que o autor se bate pelos próprios valores e deuses, e a noturna, em que um escritor escuta e repete o que dizem os seus demônios, os duplos que habitam no fundo de seu coração, mesmo quando eles dizem coisas que desmentem os seus valores. 
A literatura é, também, uma descida aos Infernos. 

Claudio Magris. Alfabetos - Ensaios de Literatura. UFPR, 2008

16 de ago. de 2013

Vôo de Cecília Meireles


foto:  Darryl Dalton
O viajante acordado pode pensar na terra firme; recordar a altura a que se encontra; ver no relógio como é tarde, no tempo humano; sentir o perigo que o cerca. E no entanto, no entanto... – a tardia hora, muito além do mundo, – quando todos o ignoram, quando ninguém é capaz de adivinhar o que ele está vendo, a vida estranha que está vivendo ali, - inspira-lhe um sentimento maravilhoso e terrível de liberdade, como só se pode sentir talvez na morte.
MEIRELES, Cecília.Crônicas de viagem.3 vols. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998-1999.

4 de ago. de 2013

Viagem de Otavio Ianni


A viagem pode ser uma longa faina destinada a desenvolver o eu. As inquietações, descobertas e frustrações podem agilizar as potencialidades daquele que caminha, busca ou foge. Ao longo da
travessia, não somente encontra-se, mas reencontra-se, já que se descobre mesmo e diferente, idêntico e transfigurado. (IANNI, Otavio. Enigmas da modernidade. Civilização Brasileira,  2000,
p. 26)

1 de jul. de 2013

Crônicas de Viagem de Cecília Meireles



E o viajante apenas inclina a cabeça nas mãos, na sua janela, para entender dentro de si o que é sonho
e o que é verdade. E todos os dias são dias novos e antigos, e todas as ruas são de hoje e da
eternidade: e o viajante imóvel é uma pessoa sem data e sem nome, na qual repercutem todos os
nomes e datas que clamam por amor, compreensão, ressurreição. (1999, p. 104)

MEIRELES, Cecília. Crônicas de Viagem, vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


5 de mai. de 2013

Trem andando de Bartolomeu Campos de Queirós

Delvaux, Paul - Soledad (1955)

“Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco – da segunda classe – sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva.”

Vermelho amargo. Cosac Naify: 2011. p. 37-38

13 de abr. de 2013

A surpreendente aventura - Simone de Beauvoir


foto de Cartier-Bresson, 1946

Abro as cortinas do meu quarto, deito-me num divã, tudo em volta deixa de existir, ignoro-me a mim mesma: existe somente a página preta e branca que meus olhos percorrem. E eis que me ocorre a surpreendente aventura relatada por alguns sábios taoístas: abandonando em seu leito uma carcaça inerte, eles levantavam voo; durante séculos viajavam de cume em cume, através da terra inteira e até o céu. Quando reecontravam seu corpo, este não envelhecera. Assim vago eu, imóvel, sob outros céus em épocas passadas, e é possível que transcorram séculos antes que me reencontre, a duas ou três horas de distância, neste lugar do qual não saí. Nenhuma experiência é comparável a esta. (…) Somente a leitura, com uma economia extraordinária de meios – apenas um volume em minha mão -, cria relações novas e duráveis entre mim e as coisas.

Fonte: Balanço Final. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990 [1972]. pp. 153-154.

29 de mar. de 2013

Primeira Infância de Adélia Prado

                                                                                                       João Vaz
Era rosa, era malva, era leite,
as amigas de minha mãe vaticinando:
vai ser muito feliz, vai ser muito famosa
Eram rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre tua boca e teus olhos
o nome da trindade te proteja. 
Em ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos à vela. A viagem que eu faria
em roda de mim.

fonte: Poesia Reunida. Siciliano, 1991.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)