20 de set. de 2021

A mão :: Carlos Drummond de Andrade

Entre o cafezal e o sonho o garoto pinta uma estrela dourada na parede da capela, E nada mais resiste à mão pintora. A mão cresce e pinta o que não é para ser pintado mas sofrido. A mão está sempre compondo módul-murmurando o que escapou à fadiga da Criação e revê ensaios de formas e corrige o oblíquo pelo aéreo e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos. A mão cresce mais e faz do mundo como-se-repete o mundo que telequeremos. A mão sabe a cor da cor e com ela veste o nu e o invisível. Tudo tem explicação por que tudo tem (nova) cor. Tudo existe por que foi pintado à feição de laranja mágica, não para aplacar a sede dos companheiros, principalmente para aguçá-la até o limite do sentimento da Terra domicílio do homem. Entre o sonho e o cafezal entre guerra e paz entre mártires, ofendidos, músicos, jangadas, pandorgas, entre os roceiros mecanizados de Israel, a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil entre o amor e o ofício eis que a mão decide: Todos os meninos, ainda os mais desgraçados, sejam vertiginosamente felizes como feliz é o retrato múltiplo verde-róseo em duas gerações da criança que balança como flor no cosmo e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente em seu poder de encantação. Agora há uma verdade sem angústia mesmo no estar-angustiado. O que era dor é flor, conhecimento plástico do mundo. E por assim haver disposto o essencial, deixando o resto aos doutores de Bizâncio, bruscamente se cala e voa para nunca-mais a mão infinita a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari. Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao pintor Candido Portinari que havia deixado de viver em 6 de fevereiro de 1962. Do livro Lição de coisas (1962). In Carlos Drummond de Andrade. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1983.

14 de set. de 2021

Não te rendas :: Mario Benedetti

Não te rendas, ainda é tempo
De se ter objetivos e começar de novo,
Aceitar tuas sombras,
Enterrar teus medos
Soltar o lastro,
Retomar o vôo.

Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem,
Perseguir teus sonhos,
Destravar o tempo,
Correr os escombros
E destapar o céu.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio queime,
Ainda que o medo morda,
Ainda que o sol se esconda,
E o vento se cale,
Ainda existe fogo na tua alma.
Ainda existe vida nos teus sonhos.

Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o tens querido e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
Tirar as trancas,
Abandonar as muralhas que te protegeram,

Viver a vida e aceitar o desafio,
Recuperar o sorriso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo
Celebrar a vida e se apossar dos céus.

Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio te queime,
Ainda que o medo te morda,
Ainda que o sol ponha e se cale o vento,
Ainda existe fogo na tua alma,
Ainda existe vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um novo começo,
Porque esta é a hora e o melhor momento
Porque não estás sozinho, porque eu te amo

13 de set. de 2021

A lagartixa :: Jacques Prévert

Rich Lo

A lagartixa do amor
Fugiu mais uma vez
E me deixou o rabo entre os dedos
Bem feito
Eu quis guardá-la para mim

:::::::

Le lézard de l'amour
S'est enfui encore une fois
Et m'a laissé sa queue entre les doigts
C'est bien fait
J'avais voulu le garder pour moi



PRÉVERT, Jacques. Histoires et d'autres histoires. Paris: Le point du jour, 1963.

6 de set. de 2021

Paulo Henriques Britto: "Fábula"

Picasso

Um pensamento pensado

até a total exaustão

termina por germinar

no mesmo exato lugar

sua exata negação.


Enquanto isso, uma ideia

trauteada numa flauta

faz uma cidade erguer-se --

é claro, sem alicerces,

mas ninguém dá pela falta.


BRITTO, Paulo Henriques. Formas do nada. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)