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21 de out. de 2021

Exausto de Adélia Prado


Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

25 de jul. de 2015

Emily Dickinson

Alphonse Mucha

Com uma Jóia guardada em meus dedos —
Deitei-me e fui dormir —
O dia era quente, os ventos sem segredos —
Pensei: “Vai resistir” —

Despertei — e meus dedos honestos censurei
Onde a Jóia? — Foi-se embora —
E uma lembrança Ametista
É tudo que tenho agora —

.........................



I held a Jewel in my fingers —
And went to sleep —
The day was warm, and winds were prosy —
I said: “’Twill keep.” —

I woke — and chid my honest fingers,
The Gem was gone; —
And now, an Amethyst remembrance
Is all I own —


11 de jul. de 2015

Perto muito perto :: Helder Moura Pereira

 Robert Henri, 1903

Perto muito perto
Chego ao pé do limite,
o corpo cansado
traz as setas
do sono e a noite
esconde a alegria.
Onde tudo acontece
passam as imagens,
pressinto as nuvens
sobre os navios, o eco
de sons de aviso.
Como se inquieta
a cabeça tocando outra
na luz atravessada
de luzes. Chego à ponta
dos dedos, à esquina
da memória, adormeço, não
adormeço, canto
para adormecer.
Tudo parte de baixo
para a paisagem
do tecto, alegro-me
porque não é preciso
falar. O que sentes
está aí tão à vista
desaba sobre os olhos
o falso espaço
da casa. E a manhã
perde a luz
que só havia nas palavras.

             (Para não falar)

13 de jan. de 2015

Quando acordares lembra-te de mim :: Manuel António Pina

Marc Chagall, 1981

"Quando acordares lembra-te de mim. Eu sou aquele que te pegou na mão, e o que te acariciou os cabelos. Estavas cheio de medo e o sono não conseguia arrastar-te para dentro de ti, nem o tempo para dentro de tua mais íntima idade. Precisavas de alguém que te amparasse a cabeça e te falasse em voz alta. Tantas vozes, lembras-te? Tanto silêncio, lembras-te? Eu estava lá e só eu te ouvia."

 in Todas as palavras

22 de nov. de 2014

Disciplina :: Cesare Pavese

O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.

In:  Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite

13 de mar. de 2014

Voando com o pássaro :: Ana Cristina Cesar (1952-1983)

Erik Hedin - Borlänge
Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.     

31 de dez. de 2013

Cantiga de embalar :: Rainer Maria Rilke


                                                  Matizes - Namoro 
Gostava de cantar a alguém uma cantiga de embalar,
sentar-me a seu lado, e ficar sossegado.
Gostava de embalar-te murmurando uma canção,
estar contigo na orla do sono.
Ser a única pessoa acordada em casa
a saber que a noite está fria.
Gostava de ouvir cá dentro e lá fora,
ouvir-te, ouvir o mundo e os bosques.
Os relógios tocam a rebate,
e podes ver o tempo até ao fim escoar-se.
Ao fundo da rua um estranho passa
e incomoda o cão de um vizinho.
Por trás, o silêncio. Pousei os meus olhos
em ti como numa mão aberta,
e eles prendem-te ao de leve e deixam-te ir,
quando algo se move no escuro

         

27 de nov. de 2013

Aléns :: Mia Couto

 M.C. Escher
(...) Olhei  o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.
 Aquela era a minha última noite desse retiro nos matos.  Manhã seguinte eu já entrava na vila, como quem regressa a seu próprio corpo depois do sono. Olhei o poente e vi as aves carregando o sol, empurrando o dia para outros aléns.

fonte: O último voo do flamingo. Companhia das Letras, 2005.

3 de mar. de 2013

ADIAMENTO de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...

Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,

E assim será possível; mas hoje não...

Não, hoje nada; hoje não posso.

A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,

O sono da minha vida real, intercalado,

O cansaço antecipado e infinito,

Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...

Esta espécie de alma...

Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me,

Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...

Ele é que é decisivo.

Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...

Amanhã é o dia dos planos.

Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;

Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...

Tenho vontade de chorar,

Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.

Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.

Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...

Depois de amanhã serei outro,

A minha vida triunfar-se-á,

Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...

Mas por um edital de amanhã...

Hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,

Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...

Antes, não...

Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.

Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

Só depois de amanhã...

Tenho sono como o frio de um cão vadio.

Tenho muito sono.

Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...

Sim, talvez só depois de amanhã...


O porvir...

Sim, o porvir...
14-4-1928


Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 266.
1ª publ. in Solução Editora, nº1. Lisboa 1929.

8 de jan. de 2013

"Existe algum modo de um homem ser apenas quem é?" de Orhan Pamuk

"O senhor conhece a história do grande Mevlana sobre a chave? Ontem à noite, por sorte, me veio um sonho sobre o mesmo tema. Tudo à minha volta estava branco, branco como essa neve. E então, de repente, acordei sentindo uma dor terrível, fria, gelada, no meu peito. Parecia que eu tinha uma bola de neve apertando o coração - uma bola de gelo, ou uma bola de cristal -, mas não; era a chave de diamante do grande poeta Rumi Mevlana, pousada no meu peito, em cima do coração. Peguei a chave e levantei da cama, tentando usá-la para abrir a porta do meu quarto, e ela abriu; e me vi num outro quarto onde, na cama, dormia um homem igual a mim, mas que não era eu. Pegando a chave pousada sobre o peito do homem adormecido e deixando a minha em seu lugar, abri a porta do seu quarto: e o quarto seguinte era idêntico, e o outro também, e naquele em que entrei depois vi ainda que havia sombras nesses quartos: outros fantasmas sonâmbulos como eu, todos com uma chave nas mãos. E em cada quarto uma cama, e em cada cama um homem que sonhava como eu! Percebi então que estava no mercado do Paraíso. Mas ali nada era comprado ou vendido, não havia dinheiro nem selos - só rostos e formas humanas. Se você quisesse, podia transformar-se em outra pessoa . Bastava passar o rosto escolhido sobre a face, como uma máscara, para começar uma vida nova. Mas eu sabia que a pessoa em que eu queria me transformar era a que estava no último dos mil e um quartos, mas, quando enfiei a última chave naquela última fechadura, a porta não abriu. Foi então que compreendi: a única chave capaz de abrir aquela porta era a primeira de todas, a chave que eu tinha encontrado em cima do meu peito quando acordara da primeira vez e era fria como o gelo, mas eu não tinha meio de saber onde aquela chave estaria agora ou com quem, qual era o quarto, qual a cama em que eu a deixara e, tomado de um arrependimento terrível, descobri que estava condenado a vagar, como todos os outros infelizes, de quarto em quarto, de porta em porta, trocando uma chave por outra, examinando cuidadosamente cada rosto que encontro mergulhado no sono, para todo o sempre"
fonte: Orhan Pamuk. O Livro Negro. Companhia das Letras

16 de mar. de 2012

Acalanto de Paulo Henriques Britto


Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de urna dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno. 

fonte: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

4 de fev. de 2012

Intimidade de Débora Siqueira Bueno


Chagall 


Desvelamentos –
a dobra branca das coxas,
a maciez do rosto,
nuances da voz,
ruídos do corpo.
Ressono.

Tive um pesadelo e gritei
mas no segundo seguinte já o sabia –
é sonho.
Porém não resisti à idéia
de fruir o acalento de meu medo,
fingimento do que é.

Posso estar absorta,
não importa o vôo.
O silêncio é quietude,
presença mansa,
branda ternura.
Intimidade.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)