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17 de ago. de 2020

Gosto :: Débora Siqueira Bueno


Monet

Gosto do silêncio de casa
quando estou sozinha.
Ficar só,
prazer desimpedido do ser
pejado em acanhamento.
Estimo abraços quando o afeto é natural,
limpidez amiga,
amor cristalino.
Mas não me aborrece a falta do gesto.
Respeito tempos e distâncias.
Tão bom ter ao lado
quem comigo segue,
me acompanha ou espera
nas constantes incursões 
ao anterior,
ao interior.

Gosto de pisar em cascas de sementes,
ruído crepitante
que se casa tão bem aos passos;
caminhar sobre pedras,
espaços abertos,
descobrir percursos.
Aprecio o barulho de chuva,
quer mansa ou tempestade;
e o cheiro que a anuncia
e o aroma que a sucede e permanece
de terra farta,
agradecida.
Gosto de roça, de café com broa de fubá,
de gente simples
que conversa no alpendre
e conta casos.

Na cidade experimento o anonimato
e o prazer estético;
contemplo a arquitetura.
Praças bem traçadas,
linhas retas à Le Corbusier,
curvas de Niemeyer
e os vestígios
de diferentes antigos.
Ofusca a iluminação feérica;
vou ao cinema, ao teatro, às livrarias;
saboreio
o café expresso
a vida expressa
as expressões 
dessemelhantes,
as metamorfoses.

Posta sobre a cama sou colcha de retalhos,
cores e detalhes.
No entanto gosto da vida que trilhei
e amo os espaços
onde posso respirar fundo
e abrir os braços
em abraço ao sítio
onde encontro
a experiência
de pertença.

Mas nos lugares
que me são sagrados,
em respeito profundo e reverência
descalço as sandálias e,
de joelhos,
ponho a minha alma.


30 de set. de 2016

Dez coisas que fazem a vida valer a pena de Rubem Braga



Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.


Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecerem.


Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.

Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.


Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.


Viajar, partir…


Voltar.

Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio

Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.


fonte: As Boas Coisas da Vida. Record, 1988,

9 de jun. de 2015

Gosto de dizer:: Fernando Pessoa (Bernardo Soares)


Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

fonte: http://arquivopessoa.net/textos/

16 de abr. de 2014

A Trégua de Mario Benedetti

Jean-Baptiste-Simeon Chardin, 1728 

O tempo passa. Às vezes penso que teria que andar de pressa, aproveitar o máximo possível estes anos que me restam. Hoje em dia, qualquer um pode me dizer, depois de escrutinar minhas rugas: “Ora, mas você ainda é um homem jovem”. Ainda. Quantos anos me restam desse “ainda”? Penso nisso e me aflijo, tenho a angustiante sensação de que a vida está me escapando, como se minhas veias tivessem se aberto e eu não pudesse estancar o sangue. Porque a vida é muitas coisas (trabalho, dinheiro, sorte, amizade, saúde, complicações), mas ninguém vai me negar que, quando pensamos nessa palavra Vida, quando dizemos, por exemplo, que “nos apegamos à vida”, estamos fazendo com que seja assimilada por outra palavra mais concreta, mais atraente, mais seguramente importante: estamos fazendo que seja assimilada pelo Prazer. Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e estou certo de que isso é a vida. Daí vem a aflição (…). Ainda me restam, assim espero, uns quantos anos de amizade, de saúde aceitável, de ocupações rotineiras, de expectativa diante da sorte, mas quantos me restam de prazer? (…) “Ainda” quer dizer: está no fim.

E este é o lado absurdo de nosso acordo: dissemos que levaríamos tudo com calma, que deixaríamos o tempo correr, que depois reveríamos a situação. Mas o tempo corre, deixemos ou não (…) A experiência é boa quando vem junto com o vigor; depois, quando o vigor se vai, resta apenas uma peça de museu, decorativa, cujo único valor reside em ser uma recordação daquilo que já se foi. A experiência e o vigor são simultâneos por muito pouco tempo. Estou agora nesse pouco tempo. Não se trata, porém, de uma sorte invejável.

fonte: A Trégua. L&PM.  p. 73-4

1 de set. de 2013

Canto de Ofício :: Mariana Ianelli

Degas 
A cada dia, por ser hoje,
Eu te agradeço.
Por esse quarto à meia luz
E outros mundos,
Por esse gosto de amêndoa
E outros prazeres.

Quem quer que sejas tu
E onde estiveres,
Sob qualquer face
Que me apareças,
Assim é.

Pela incerteza essencial
Sobre mim mesma,
E estas palavras
Desde há pouco sem proveito,
Entranha, mistério, vereda
- Eu agradeço.

A cada noite inaugural
E derradeira,
Que me sustém
Não menos que o suficiente,
Bendito o fruto, o sal, o chão
E este silêncio.

Fundo de ravina o meu lugar,
Se já não creio.
Alto de um monte, se resisto.
E descrendo, resistindo,
Eu agradeço.

Que me possua o antro
Dos meus edifícios,
Como a pedra ordinária
É possuída
Por sóis e luas
Em seu tempo de maré.

Que eu me refaça
De quanto tenha desistido
Como a dizimação de um povo
No testemunho dos vivos.

E que eu envelheça
Par a par com esta casa,
Debaixo do musgo e da poeira,
O corpo palpitando ainda,
Mas num insensível batimento.

Por tudo o que se eleva
Numa onda
Logo se quebrando
Junto à espuma,
Pelo que no adeus se perpetua,
Sim, louvado seja.

Embora muito fique por saber
Das letras e dos números,
E tanto por dizer
Sobre o mal e a loucura,
Embora o rosto penso,
O grito, os pés inúteis.

Quão breve o momento
E quão vasto seu milagre.
Os favores da pele,
O céu de um poema,
A benção do pão e da água.

A benção, apesar
Do irremediável olho cego,
Das almas perseguidas
E do aborto solitário.

Porque aqui se chega,
A este dia e a esta luz
E é tão raro aceitá-lo.
Porque daqui se vai.

O adágio,
A flor do ourives,
O vermelho da China,
Um giro de bailarina,
Graças a ti, todas as artes.

Por esse vinho
E seus quinze outonos.
Pelo descanso da terra.
Por essa terra.

29 de ago. de 2013

Prazer de um sabor de Isabel Allende



Katsukawa Shunshô, 'Young Lovers Preparing Tea', early 1770s

"O prazer de um sabor centra-se na língua e no céu da boca, embora com frequência não comece ali, mas na lembrança. E a parte essencial desse prazer reside nos outros sentidos, na visão, no olfato, no tato, inclusive na audição. Na cerimônia do chá no Japão, o gosto da bebida é o menos importante – na verdade o chá é amargo – mas a serena intimidade das paredes nuas, as formas depuradas dos utensílios, a elegância do ritual, a concentrada harmonia de quem oferece o chá, o quieto agradecimento de quem o recebe, o tênue odor da madeira e do carvão, o som da concha ao verter a água no silêncio do aposento, tudo constitui uma celebração para a alma e para os sentidos. "

fonte: Afrodite. Bertrand Brasil, 2004.


19 de dez. de 2012

Pão é amor entre estranhos de Clarice Lispector




Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

in: “Felicidade Clandestina”. Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

20 de out. de 2012

As contradições do corpo de Carlos Drummond de Andrade


Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente,
Inocula-me seus patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrante do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.

Meu prazer mais refinado
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volto a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
saio a bailar com meu corpo.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)