“Viveu outrora um imperador, pai de muitos filhos, avô de muitos netos. Mais importante que as coisas da administração do império e da guerra contra os inimigos lhe eram os seus filhos e netos, a quem amava de todo coração.
Infelizmente, entretanto, como acontece com todas as pessoas acometidas do mal do amor, ele sofria sem cessar o medo de que a Morte pudesse levar um deles.
Essa idéia lhe tirava toda a alegria de viver. De dia era atormentado pela ansiedade. De noite era afligido pela insônia. Sua cabeça não tinha descanso. Seus pensamentos não paravam de procurar meios de burlar a Morte.
Seu palácio estava cheio de médicos, laboratórios e remédios, que combatiam a Morte no front das enfermidades. Havia também guardas por todos os lados, encarregados de combater a Morte no front dos acidentes.
Mas ele sabia que tais cuidados não bastavam. A morte é muito astuta. Ela ataca no momento em que não se espera, de uma forma não prevista. Por isso, o imperador mandou vir, dos lugares mais distantes do seu reino, todos os sacerdotes, profetas, videntes, mágicos, feiticeiros, sábios, gurus, com o pedido de que não só realizassem os rituais mágicos apropriados, como também escrevessem, nas páginas do enorme livro sagrado, feito especialmente para esse fim, com papiros recolhidos em noites de lua cheia nos lugares onde moravam os deuses, as fórmulas que garantiriam aos seus filhos e netos vida longa e a felicidade que ele tanto desejava. Somente assim ele poderia viver e morrer em paz.
Ouvindo a convocação do imperador, veio de uma longínqua província um velho sábio, que todos ignoravam. Ele morava num lugar distante, nas montanhas. O caminho a ser trilhado era longo e as suas pernas eram velhas e cansadas. Chegou atrasado, depois que todos, após realizarem seus rituais e registrar seus desejos, haviam partido.
O imperador se alegrou ao ser informado da chegada do homem santo e ordenou que um de seus conselheiros lhe mostrasse o livro sagrado. O velho sábio leu cuidadosamente os desejos que ali haviam sido escritos.
Havia os desejos dos tolos, que desejavam aos filhos e netos do imperador a proteção da riqueza, das armas e dos exércitos.
Havia as palavras prudentes, que aconselhavam moderação e hábitos saudáveis de vida como receita para prolongar os seus dias.
Havia as fórmulas dos sacerdotes, que invocavam a proteção dos deuses e das forças do bem.
Havia os bruxedos dos feiticeiros e mágicos, que exorcizavam as forças do mal.
Todas estas palavras traziam ao imperador grande alegria - e ele julgava que elas protegeriam melhor aqueles a quem amava.
Após ler tudo o que fora escrito, o velho sábio tomou de uma pena e gravou nas páginas do livro sagrado estas palavras:
“Os avós morrem. Os pais morrem. Os filhos morrem.”
E assinou o seu nome.
O imperador, ao ler tais palavras enfureceu-se, julgando-as fórmulas de maldição e exigiu que o sábio se explicasse, sob pena de ser mandado para a prisão pelo resto dos seus dias.
“Majestade”, disse o sábio. “Não sei receitas para impedir a chegada da Morte. Ela virá de qualquer forma. Sou apenas um velho poeta. Minhas palavras não têm o poder de exorcizá-la. O que eu posso desejar é que ela venha na ordem certa.”
“A ordem certa?”
“O que é que mais deseja um avô? Ele deseja morrer vendo seus filhos e netos cheios de vida e de alegria.
O que é que mais deseja um pai? Ele deseja morrer vendo seus filhos saudáveis e felizes.
Aqueles que amam morrem felizes se aqueles a quem amam continuam a viver. Não tenho palavras mágicas para impedir que a Morte venha. Mas lhe ofereço meus desejos de que ela venha na ordem certa. Desejo que Vossa Majestade morra antes dos seus filhos e netos.
Por isso invoquei a Morte, na ordem da felicidade:
“Os avós morrem. Os pais morrem. Os filhos morrem.”
O imperador sorriu, tomou nas suas as mãos do velho sábio e as beijou.
Alves, Rubem. A felicidade dos pais. Paulus, 2006.
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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15 de dez. de 2013
10 de nov. de 2013
Jardineiro de Rubem Alves
In: Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. Loyola, 1999. p. 24
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