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10 de dez. de 2020

Precisa-se :: Clarice Lispector

Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

fonte: A descoberta do mundo. Rocco, 1999.

20 de jul. de 2018

Pura alegria de Clarice Lispector

Odilon Redon 


De pura alegria, seu coração bateu tão depressa como se ele tivesse engolido muitas borboletas.

in: O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro, Rocco, 1999.

23 de out. de 2016

O Impossível Carinho :: Manuel Bandeira


Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
-Eu soubesse repor_
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

6 de nov. de 2015

Dialética :: Vinícius de Moraes


É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...


MORAES, Vinícius de. Nova antologia poética. Org. por Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

6 de set. de 2015

O tempo redescoberto :: Marcel Proust

 Pablo Picasso, 1957

(...) Porque, embora deva ser breve a nossa vida, é só enquanto sofremos que nossos pensamentos, de algum modo agitados por movimentos perpétuos e ondulantes, elevam, como numa tempestade, a um nível onde se torna visível, toda essa imensidão regida por leis, que, debruçados a uma janela mal colocada, não conseguimos avistar, porque deixa-a rasa e lisa a calma da felicidade; só para alguns grandes gênios tal movimento existirá sempre, independente da agitação da dor; não o podemos todavia afirmar, pois, ao contemplar-lhes o largo e regular desenvolvimento das obras alegres, inferimos, da alegria da produção, a da vida, talvez ao contrário constantemente dolorosa?

in: O tempo redescoberto.  Globo. p. 173.

3 de set. de 2015

Se eu fosse eu :: Clarice Lispector




















Joseph Beuys


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou se ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova do desconhecimento. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Jornal do Brasil. 30 de novembro de 1968



11 de jul. de 2015

Perto muito perto :: Helder Moura Pereira

 Robert Henri, 1903

Perto muito perto
Chego ao pé do limite,
o corpo cansado
traz as setas
do sono e a noite
esconde a alegria.
Onde tudo acontece
passam as imagens,
pressinto as nuvens
sobre os navios, o eco
de sons de aviso.
Como se inquieta
a cabeça tocando outra
na luz atravessada
de luzes. Chego à ponta
dos dedos, à esquina
da memória, adormeço, não
adormeço, canto
para adormecer.
Tudo parte de baixo
para a paisagem
do tecto, alegro-me
porque não é preciso
falar. O que sentes
está aí tão à vista
desaba sobre os olhos
o falso espaço
da casa. E a manhã
perde a luz
que só havia nas palavras.

             (Para não falar)

4 de mai. de 2015

Da vista e do visto ::Eucanaã Ferraz


Mais uma vez é maio; não o levaste contigo;
horas se escrevem hoje com o lápis de sempre,
ultramar e um tanto adolescente; não o levaste,
maio, mês do meu aniversário, quando a melancolia
é menos nítida que a linha dos morros e dos edifícios;

vento sol amendoeiras, é como te digo, não levaste
maio e mesmo os meus olhos estão aqui, comigo, algo,
porém, sei que se foi contigo; que coisa era, não sei,
e, ainda que pequena, faz falta, era minha; coincidência
ou não, procuro e não encontro a minha antiga alegria.

Sentimental: poemas. Companhia das Letras, 2012.

26 de mar. de 2015

Agora vou falar da dolencia das flores :: Clarice Lispector

John William Waterhouse

Agora vou falar da dolência das flores para sentir mais a ordem do que existe. Antes te dou com prazer o néctar, suco doce que muitas flores contêm e que os insetos buscam com avidez. Pistilo é órgão feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contém o rudimento da semente. Pólen é pó fecundante produzido nos estames e contido nas anteras. Estame é órgão masculino da flor. É composto por estilete e pela antera na parte inferior contornando o pistilo. Fecundação é a união de dois elementos de geração - masculino e feminino - da qual resulta o fruto fértil. “E plantou Javé Deus um jardim no Éden que fica no Oriente e colocou nele o homem que formara” (Gen. 11-8).
Quero pintar uma rosa.
Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido. Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é belíssimo. As pétalas têm gosto bom na boca - é só experimentar. Mas rosa não é it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz do Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas. As amarelas são de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.
Preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para reino novo.
fonte: Água viva. 11. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

2 de mar. de 2015

Infância :: Helena Kolody

Anita Malfatti 
Aquelas tardes de Três Barras,
Plenas de sol e de cigarras!

Quando eu ficava horas perdidas
Olhando a faina das formigas
Que iam e vinham pelos carreiros,
No áspero tronco dos pessegueiros.

A chuva-de-ouro
Era um tesouro,
Quando floria.
De áureas abelhas
Toda zumbia.
Alfombra flava
O chão cobria...

O cão travesso, de nome eslavo,
Era um amigo, quase um escravo.

Merenda agreste:
Leite crioulo,
Pão feito em casa,
Com mel dourado,
Cheirando a favo.

Ao lusco-fusco, quanta alegria!
A meninada toda acorria
Para cantar, no imenso terreiro:
“Mais bom dia, Vossa Senhoria”...
“Bom barqueiro! Bom barqueiro...”
Soava a canção pelo povoado inteiro
E a própria lua cirandava e ria.

Se a tarde de domingo era tranquila,
Saía-se a flanar, em pleno sol,
No campo, recendente a camomila.
Alegria de correr até cair,
Rolar na relva como potro novo
E quase sufocar, de tanto rir!

No riacho claro, às segundas-feiras,
Batiam roupas as lavadeiras.
Também a gente lavava trapos
Nas pedras lisas, nas corredeiras;
Catava limo, topava sapos
(Ai, ai, que susto! Virgem Maria!)

Do tempo, só se sabia
Que no ano sempre existia
O bom tempo das laranjas
E o doce tempo dos figos...

Longínqua infância... Três Barras
Plena de sol e cigarras!

 in A Sombra no Rio, 1951)

17 de set. de 2014

Doída alegria - Ferreira Gullar

Aldemir Martins
Durante anos
foi a minha constante companhia
aonde eu estava
ele vinha
e ronronando
em meu colo se acolhia

Até que um dia...

Faz anos já que a casa está vazia

Mas eis que
inesperado
ele de novo chega
e se deita a meu lado

Não me atrevo
a olhá-lo
pois é melhor não vê-lo
que não vê-lo

Nada pergunto
apenas vivo
a doída ilusão
de tê-lo junto

18 de ago. de 2014

Lisonjear as palavras:: Manoel de Barros

Bryan Allen

"Tenho gosto de lisonjear as palavras ao modo que o Padre Vieira lisonjeava. Seria uma técnica literária do Vieira? É visto que as palavras lisonjeadas se enverdeciam para ele. Eu uso essa técnica. Eu lisonjeio as palavras. E elas até me inventam. E elas se mostram faceiras para mim. Na faceirice as palavras me oferecem todos os seus lados. Então a gente sai a vadiar com elas por todos os cantos do idioma.
Ficamos a brincar brincadeiras e brincadeiras. Porque a gente não queria informar acontecimentos. Nem contar episódios. Nem fazer histórias. A gente só gostasse de fazer de conta. De inventar as coisas que aumentassem o nada. A gente não gostava de fazer nada que não fosse de brinquedo. Essas vadiagens pelos recantos do idioma seriam só para fazer jubilação com as palavras. Tirar delas algum motivo de alegria.
Uma alegria de não informar nada de nada. Seria qualquer coisa como a conversa no chão entre dois passarinhos a catar perninhas de moscas. Qualquer coisa como jogar amarelinha nas calçadas. Qualquer coisa como correr em cavalo de pau. Essas coisas. Pura jubilação sem compromissos. As palavras mais faceiras gostam de inventar travessuras. Uma delas propôs que ficássemos de horizonte para os pássaros. E os pássaros voariam sobre o nosso azul. Eu tentei me horizontar às andorinhas. E as palavras mais faceiras queriam se enluarar sobre os rios. Se ficassem prateadas sobre os rios falavam que os peixinhos viriam beijá-las.
A gente brincava no prateado das águas. A mais pura jubilação!"
In: Memórias Inventadas - A Terceira Infância; Planeta, 2010

7 de ago. de 2014

Utopia :: José Afonso

Matisse
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

28 de jun. de 2014

A moça anônima da história :: Clarice Lispector

Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim. Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profunda tristeza e que a tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose.  Neurose de guerra.

fonte: A Hora da Estrela. Rocco, 1998.

12 de jun. de 2014

O mais singular livro dos livros :: J. W. Goethe (1749-1832)

Edward Burne-Jones 


O mais singular livro dos livros
É o Livro do Amor;
Li-o com toda a atenção:
Poucas folhas de alegrias,
De dores cadernos inteiros;
Apartamento faz uma secção,
Reencontro! um breve capítulo,
Fragmentário. Volumes de mágoas
Alongados de comentários,
Infinitos, sem medida.
Ó Nisami ! – mas no fim 
Achaste o justo caminho;
O insolúvel, quem o resolve?
Os amantes que tornam a encontrar-se.

De Divan Ocidental-Oriental

11 de mai. de 2014

Toda mãe vive de boa :: João Guimarães Rosa

Dorothea Lange

Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.
Grande Sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar, 1994. p. 51

5 de mai. de 2014

É uma coisa deliciosa escrever - Gustave Flaubert

Granger

[...] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa floresta, por uma tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? ou então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc!
Gustave Flaubert in  Cartas exemplares.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)