28 de nov. de 2018

Ar de família :: Armando FREITAS FILHO


Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.


Dever. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

22 de nov. de 2018

Repenso o mundo :: W i s ł awa S z y m b o r s k a

Repenso o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
aos idiotas o riso,
aos tristes o pranto,
aos carecas o pente,
aos cães botas.

Eis um capítulo:
A Fala dos Bichos e das Plantas,
com um glossário próprio
para cada espécie.
Mesmo um simples bom-dia
trocado com um peixe,
a ti, ao peixe, a todos
na vida fortalece.

Essa há muito pressentida,
de súbito revelada,
improvisação da mata.
Essa épica das corujas!
Esses aforismos do ouriço
compostos quando imaginamos
que, ora, está só adormecido!

O tempo (capítulo dois)
tem direito de se meter
em tudo, coisa boa ou má.
Porém — ele que pulveriza montanhas
remove oceanos e está
presente na órbita das estrelas,
não terá o menor poder
sobre os amantes, tão nus
tão abraçados, com o coração alvoroçado
como um pardal na mão pousado.

A velhice é uma moral
só na vida de um marginal.
Ah, então todos são jovens!
O sofrimento (capítulo três)
não insulta o corpo.
A morte
chega com o sono.

E vais sonhar
que nem é preciso respirar,
que o silêncio sem ar
não é uma música má,
pequeno como uma fagulha,
a um toque te apagarás.

Morrer, só assim. Dor mais dolorosa
tiveste segurando nas mãos uma rosa
e terror maior sentiste ao som
de uma pétala caindo no chão.

O mundo, só assim. Só assim
viver. E morrer só esse tanto.
E todo o resto — é como Bach
tocado por um instante
num serrote

w i s ł awa s z y m b o r s k a
Poemas
Seleção, tradução e prefácio
Regina Przybycien
Companhia das Letras, 2011

Escolha o seu sonho :: Cecília Meireles




Devíamos poder preparar os nossos sonhos como os artistas, as suas composições. Com a matéria sutil da noite e da nossa alma, devíamos poder construir essas pequenas obras-primas incomunicáveis, que, ainda menos que a rosa, duram apenas o instante em que vão sendo sonhadas, e logo se apagam sem outro vestígio que a nossa memória.

Como quem resolve uma viagem, devíamos poder escolher essas explicações sem veículos nem companhia – por mares, grutas, neves, montanhas e até pelos astros, onde moram desde sempre heróis e deuses de todas as mitologias, e os fabulosos animais do Zodíaco.

Devíamos, à vontade, passear pelas margens do Paraíba, lá onde suas espumas crespas correm com o luar por entre as pedras, ao mesmo tempo cantando e chorando. – Ou habitar uma tarde prateada de Florença, e ir sorrindo para cada estátua dos palácios e das ruas, como quem saúda muitas famílias de mármore… – Ou contemplar nos Açores hortênsias da altura de uma casa, lagos, de duas cores e cestos de vime nascendo entre fontes, com águas frias de um lado e, do outro, quentes… – Ou chegar a Ouro Preto e continuar a ouvir aquela menina que estuda piano há duzentos anos, hesitante e invisível – enquanto o cavalo branco escolhe, de olhos baixos, o trevo de quatro folhas que vai comer.

Quantos lugares, meu Deus, para essas excursões! Lugares recordados ou apenas imaginados. Campos orientais atravessados por nuvens de pavões. Ruas amarelas de pó, amarelas de sol, onde os camelos de perfil de gôndola estacionam, com seus carros. Avenidas cor-de-rosa, por onde cavalinhos emplumados, de rosa na testa e colar ao pescoço, conduzem leves e elegantes coches policromos …

… E lugares inventados, feitos ao nosso gosto; jardins no meio do usar; pianos brancos que tocam sozinhos; livros que se desarmam, transformados em música. […]

Devíamos poder sonhar com as criaturas que nunca vimos e gostaríamos de ter visto: Alexandre, o Grande; São João Batista; o Rei Davi a cantar; o Príncipe Gautama…

E sonhar com os que amamos e conhecemos, e estão perto ou longe, vivos ou mortos… Sonhar com eles no seu melhor momento, quando foram mais merecedores de amor imortal…

Ah!… – (que gostaria você de sonhar esta noite?)

Crônica extraída do Livro “Escolha o seu sonho” de Cecília Meireles. 4ª ed., Rio de Janeiro: Global Editora, 2016
.

14 de nov. de 2018

Etiópia:: Francesca Angiolillo



Etiopía era a estação
de metrô da minha casa
quando eu me mudei daqui –
você logo
se lembrou
da Etiópia.
A estação de metrô tinha
uma cabeça de leão
como emblema
a sua Etiópia tinha
um filhote de chacal e
um imperador
segurando o filhote de animal
uma pedra no anel
no dedo do imperador
sobre a cabeça do filhote
– nela brilhava o sol.
O fascismo que você
deplorou do alto
de seus oito anos
na fila do leite
porque leite não havia
ergueu cidades
na Etiópia.
(No ano em que você nasceu
o imperador foi eleito
homem do ano
da Time Magazine;
depois disso
bem depois um tanto depois de
nascida eu
outras crianças passaram fome
sem direito a fila
no vale do rio Omo.)
Nunca soube das cidades
que você não ergueu
nas terras de Afar
onde Lucy nossa mãe
até hoje está
mas sei da pedra do anel
no dedo de
Haile
Selassie
como se eu estivesse lá
como se eu fosse você.
Sua Etiópia hoje é
uma fotografia
– nela você aparece
cercado de gente
negra pintada –
guardada
numa caixa
de papelão.


Mirindiba:: Ana Dinni




Eu queria te mostrar a mirindiba em flor sob a lua minguante,
mas como eu não conheço a arte dos fotógrafos, eu te conto:
ela está aqui, acima dos meus olhos, cheia de flor branca na noite escura.

13 de nov. de 2018

Esta gente:: Sophia de Mello Breyner Andresen

Esta Gente

Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 

Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 

Pois a gente que tem 
O rosto desenhado 
Por paciência e fome 
É a gente em quem 
Um país ocupado 
Escreve o seu nome 

E em frente desta gente 
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo 

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia" 

9 de nov. de 2018

Pessoas erradas :: Tati Bernardi

Eu estava sentada em uma padaria em Higienópolis quando comecei a sentir aquele arrepio de contentamento na espinha. É como se fizesse um sol quentinho de fim de tarde na barriga e apaziguasse os inúmeros inconformismos do fígado. Tudo isso só porque uma mulher levemente acima do peso entrou no recin usando meias coloridas com chinelo de dedo e comprou dois pacotes de bisnaguinha de milho. Se existe esse tipo de gente e eu mereço estar ao lado, o que de errado pode me acontecer hoje?

Desde que passei a observar, com certa devoção (e me sentindo também em paz e resoluta), esses desconhecidos tão seguramente "errados", decidi que me tornei irremediavelmente adulta. Ser adulto é se emocionar vivamente com a falta de pose dos que finalmente desistiram de não ser eles mesmos.

Admiro pessoas aleatórias que metem uma jardineira jeans em cima de um moletom grande. Que erram tão drasticamente no corte de cabelo que dá vontade de ter uma boneca miniatura delas alegrando o escritório. Que demoram para achar uma caneta seca dentro de uma mochila cheia de papéis amassados e que, no final do dia, ostentam óculos que começam a escorregar pela oleosidade de um nariz com narinas milimetricamente disformes.

Esses guerreiros banais são meus heróis do dia a dia. A tia Yolanda de axilas flácidas e bigode descolorido, comprando pescadinha na feira, talvez seja, e a gente passou uma vida renegando isso, a melhor coisa que seus olhos podem alcançar hoje.

Virei uma espécie de caçadora de ancas desequilibradas pelas ruas de Perdizes. Como são queridos os seres que andam por aí como se carregassem uma plaquinha neon no lordo: "Sou apenas mais um que tenta, em vão, disfarçar levemente a luta diária para ser bípede"

Eu vejo latejar neles meus ligamentos inflamados. Vejo meus mais profundos desconfortos existenciais. Sempre que estou sentada ou em pé ou deitada eu penso: "Peraí, parece que tem alguma coisa errada nessa postura". Saber que os muitos e deslumbrantes perambuladores desacertados me entendem me dá ganas de sair pelada e dançando e cantando (e cheia de dores e erros e pelos e gorduras e buracos e preguiças) e abraçá-los. Vamos! Arfantes, enviesados, pendentes, pálidos, frouxos, enrugados, sobreviver ao declive da rua Ministro Gastão Mesquita!

Esses tipos escancaradamente imperfeitos se tornaram meu oxigênio. Eles não sabem mas, muitas vezes, sentada sozinha num restaurante qualquer, eu só consigo comer e pagar a conta e seguir por causa deles. Como são lindos e passíveis de fortes paixões, os feiosos que achamos que ninguém vai querer. Sou melhor porque estou agora sentada, quentinha, embalada pelo nosso desastre. O único colo do adulto é estar confortavelmente péssimo.

Salve você, com seus centímetros a mais em um dos lados. Deus guarde você, com um dos seios claramente mais caído. Vida longa ao amigo cujo saco direito é mais atrofiado. Grande fodedor esse cara do pau meio torto e meia-bomba. Por favor, que minha cicatriz do parto possa ser lambida e adorada. Que seu queixo esculpido no inferno seja a capa da mais cara revista. Respeito tanto quem desistiu de empinar os peitos ao chegar em festas (ou erguer a bunda ao sair das festas) que chega a encher meus olhos de lágrimas. As melhores pessoas são aquelas que abdicaram de parecer as melhores pessoas para as piores pessoas.


Tati Bernardi
Folha de São Paulo. 09.11.18

5 de nov. de 2018

Visoth Kakvei : doodles
























Doodle é uma palavra inglesa para referir um tipo de esboço ou desenho realizado ao acaso, quando uma pessoa está distraída ou ocupada. Em português, a palavra traduzida corresponde a "rabisco". São desenhos simples que podem ter significado concreto de representação ou simplesmente representar formas abstratas.




2 de nov. de 2018

Amor como em casa : Manuel António Pina (1943 - 2012)

Magritte

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

1 de nov. de 2018

Os professores:Valter Hugo Mãe

Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade.

A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.

Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.

Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo.

Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que induziam a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.

Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se tivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível.

Dá-me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.

Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto.

As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.

*Autobiografia Imaginária -Valter Hugo Mãe, JL Jornal de Letras, Artes e Ideias ,
Ano XXII / Nº 1095 .

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)