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15 de jun. de 2016

O elefante :: Carlos Drummond de Andrade

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

25 de out. de 2015

A uma passante :: Charles Baudelaire

Federico Zandomeneghi


A uma transeunte

A rua ensurdecedora em meu redor berrava
Alta, esguia, de luto carregado, dor majestosa,
Um mulher passou, com sua mão faustosa
Erguendo, baloiçando o ramo e a bainha

Ágil e nobre, com sua perna de estátua,
Eu bebia, crispado como extravagante,
No seu olhar, céu lívido onde nasce o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata

Um raio… em seguida, a noite!  - Beleza fugitiva
Cujo olhar me fez repentinamente renascer,
Só voltarei a ver-te na eternidade?

Algures, bem longe daqui! Demasiado tarde! Nunca talvez!
Eu não sei para onde fugiste, tu não sabes para onde vou,
Tu que eu teria amado, tu que sabias que sim!

Tradução de Maria Gabriela Llansol

.........

A rua em derredor era um ruído incomum, 
longa, magra, de luto e na dor majestosa, 
Uma mulher passou e com a mão faustosa 
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. 
Eu bebia perdido em minha crispação 
No seu olhar, céu que germina o furacão, 
A doçura que embala o frenesi que mata.

Um relâmpago e após a noite! — Aérea beldade, 
E cujo olhar me fez renascer de repente, 
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! 
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais, 
Tu que eu teria amado — e o sabias demais! 

Tradução de  Paulo Menezes

........

A uma passante
A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.

Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.

Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade

De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!

Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

Tradução de Guilherme de Almeida

A uma Passante
A rua em derredor era um ruído incomum,

Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;

Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.

Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que se embala e o frenesi que mata.

Um relâmpago, e após a noite! – Aérea beldade,

E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, “jamais” provavelmente!

Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado – e o sabias demais!
Tradução de Jamil Haddad


À une passante (original)
La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse ,
Une femme passa, d’ une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de stautue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair…puis la nuit! – Fugitive beauté

Dont le regard m’a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l’eternité?

Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! “jamais” peut-être!

Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

16 de jun. de 2015

A curva dos teus olhos :: Paul Éluard

Andrew Wyeth

A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.

17 de fev. de 2014

O Homem Público N. 1 de Ana Cristina Cesar

Ana Cristina Cesar 
Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

30 de jan. de 2014

Diadorim - Guimarães Rosa


''Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança''
Grande Sertão: Veredas. 

7 de abr. de 2013

Pequena elegia de setembro de Eugénio de Andrade


Burne-Jones 

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

6 de dez. de 2012

Flor de Lótus de Rabindranath Tagore


No dia em que a flor de lótus desabrochou,
A minha mente vagava,
E eu não a percebi.
Minha cesta estava vazia.
E a flor ficou esquecida.

Somente agora e novamente,
Uma tristeza caiu sobre mim.
Acordei do meu sonho
Sentindo o doce rastro
De um perfume no vento sul.

Essa vaga doçura 
Fez o meu coração doer de saudades.
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão,
Procurando completar-se.
Eu não sabia então que a flor estava tão perto de mim,
Que ela era minha,
E que essa perfeita doçura
Tinha desabrochado no fundo do meu coração.

12 de mai. de 2009

Como tratar o que se tem de Clarice Lispector




Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa que não tenha medo do que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesmo que está relinchando de prazer ou de cólera.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)