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24 de fev. de 2015

Humano :: Adélia Prado

Pablo Picasso, 1903
A alma se desespera,
mas o corpo é humilde;
ainda que demore,
mesmo que não coma,
dorme.

Miserere. Record, 2014.

15 de fev. de 2014

Pingentes de citrino :: Adélia Prado

Amedeo Modigliani, 1916

Tão lírica minha vida,
difícil perceber onde sofri.
Depois de décadas de reprimido desejo,
furei as orelhas.
Míúdos como grãos de arroz,
brinquinhos de pouco brilho
me tornam mais bondosa.
Fora minhas irmãs, 
que também pagam imposto
ao mesmo comedimento,
quase ninguém notou.
Fiquei mais corajosa, 
igual a mulheres que julgava levianas
e eram só mais humildes.

In: Miserere. Record, 2013.

25 de set. de 2012

Zoé e o demônio do meio-dia de Contardo Calligaris

DESDE PEQUENA, Zoé, 9 anos, adora filmes e histórias de terror. Seus pedidos espantam a moça da locadora de DVDs, que, provavelmente, duvida da sanidade mental dos pais.

De fato, Zoé assiste com prazer a filmes que, às vezes, deixam insones seu irmão mais velho, suas baby-sitters e mesmo sua mãe. Talvez Zoé seja cinéfila a ponto de assistir aos ditos filmes com o distanciamento de um crítico dos "Cahiers du Cinéma". Ela desmontaria os "truques" destinados a produzir espanto nos espectadores e, com isso, os filmes lhe proporcionariam uma experiência parecida com a de um bom exorcista: ela venceria o mal desvendando seus estratagemas.

Mas a paixão de Zoé pelas histórias de terror tem outra explicação possível, que me apareceu quando Zoé quis que sua festa de aniversário fosse o cenário de um filme.

Com a ajuda de um cineasta amigo da família, Zoé e seus convidados foram co-autores e protagonistas de um curta que, claro, é a história do aniversário de uma menina, durante o qual um monstro diabólico e sedento de sangue etc.

Graças ao filme (que, aliás, é bem legal) pensei o seguinte: talvez Zoé queira sobretudo convencer-se de que sempre, mesmo no dia ensolarado de seu aniversário, há zonas de sombra, por onde andam seres repugnantes e perigosos. Alguém perguntará: "Mas por que ela gostaria de pensar assim?"

Pois é, eu acho que essa idéia é, para qualquer um, uma fonte de alívio. Explico por quê.

O Salmo 90 (na numeração Clementina) expressa a esperança de que Deus nos guarde tanto das abominações "que circulam pelas trevas" quanto "do demônio do meio-dia". Sobre o tal demônio do meio-dia muito foi escrito e dito: diferente dos diabos que se escondem nos cantos escuros, o que será esse malefício que nos espreita justamente quando o sol está no zênite e o mundo nos aparece sem sombras?
Uma leitura moderna diz que o demônio do meio-dia não é um bicho do inferno, mas é um sofrimento insidioso, específico de uma época em que faltam cantos escuros.

Ele é nossa própria tristeza, a depressão e o tédio produzidos por um mundo com poucas sombras e poucos mistérios.

Em outras palavras, as luzes da razão e da ciência acabaram com aquele sentido que só uma transcendência (divina ou diabólica, benéfica ou maléfica, tanto faz) podia conferir à vida. Por excesso de luz, em suma, o mundo perdeu seus horrores, mas também seu encanto; com isso, é preciso que Deus nos proteja do demônio do meio-dia, ou seja, do tédio e da tristeza.

Ao inventar cantos escuros e ao povoá-los de "troços" inquietantes, Zoé está se protegendo contra o demônio do meio-dia -com toda razão, pois esse é provavelmente o mais pernicioso de todos. Muito melhor se deparar com Freddy Kruger do que não achar graça no mundo.

"Filosofia do Tédio", de Lars Svenden (Zahar), é uma brilhante meditação sobre a dificuldade moderna em nos interessarmos pela vida, uma vez que ela não é mais justificada pela palavra divina ou por nossa luta heróica contra os "troços" que circulam pelas trevas. Para Svenden, contra o tédio, ainda não inventamos nada melhor do que o remédio do Romantismo: uma mistura de anestesia (drogas lícitas e ilícitas) com transgressões que deveriam provar que estamos vivendo grandes aventuras e experiências "incríveis". Se for para escolher, prefiro os esforços de Zoé para repovoar o mundo de monstros e demônios.

Mas há uma terceira via. Li, nestes dias, "O Olho da Rua", de Eliane Brum (Globo). Brum, repórter especial da revista "Época", reúne dez grandes reportagens escritas entre 2000 e 2008. Fazia tempo que um livro não me tocava tanto. Que Brum fale das parteiras do Amapá, da guerra em Roraima, dos velhos da casa São Luiz para Velhice, ou mesmo que ela acompanhe o fim da vida de uma paciente terminal, seu texto é uma verdadeira alegria - pois ele nos lembra, simplesmente, que o mundo importa, que ele vale a pena. Como ela consegue?

O tédio moderno é uma forma de arrogância: a vida é chata porque nós seríamos maiores que sua suposta trivialidade insossa; tendemos a menosprezar o cenário onde nos toca viver, como se ele fosse demasiado banal para nossas façanhas. Pois bem, o segredo de Brum é o oposto disso, é uma extraordinária humildade diante do que existe.

Quando Zoé cansar de inventar monstros para dar sentido ao mundo e à vida, vou lhe sugerir o livro de Eliane Brum.

18 de abr. de 2012

O cheiro da madeira de Marcello Mastroianni


Nas férias escolares, entre uma figuração e outra, eu passava quase todos os verões na oficina de meu pai e de meu avô - uma oficininha numa garagem pequena, com duas bancadas de carpintaria, porque os dois eram carpinteiros.
Meu pai ia embora na hora do almoço. Aí meu avô, homem de poucas palavras, dizia-me: " Varra as aparas de madeira e a serragem. As lixas, guarde-as ali. Depois, se tiver tempo, afie as ferramentas". Eu perguntava: "Mas quando é que vou comer ?"
No fundo, isso não me desagradava, porque eu admirava o trabalho daqueles dois homens, que, entre outras coisas, viviam discutindo. Meu pai dizia: "Já faz um dia que está trabalhando nessa cadeira de cozinha ! Quanto é que vai poder cobrar daquela mulher ?" E meu avô: "É minha obrigação consertá-la". Já naquele tempo, havia conflito de gerações.
Eu ficava um pouco envergonhado. Ali pelos quinze, dezesseis anos, comecei a olhar para as meninas. De vez em quando, meu avô me dizia: "Pegue a bolsa de ferramentas. Vamos consertar uma porta que não fecha mais". Na casa a que devíamos ir, talvez morasse uma garota em quem eu estivesse interessado, e chegar com aquela sacola de ferramentas seria ... Sinceramente, eu tinha vergonha.
Mas as lembranças daqueles anos são muito bonitas. O cheiro da madeira, por exemplo. Quem não o conhece não pode imaginar quanto é bom. O cheiro de madeira misturado ao suor de meu pai e de meu avô, aos impropérios, às cuspidas de vovô, que fumava cachimbo. Acho que aprendi muita coisa com aquelas experiências - certa percepção das coisas simples, certa humildade.
in: Mastroianni, Marcello. Eu me lembro, sim, eu me lembro. DBA, 1999. p. 95.

1 de jan. de 2008

Humildade :: Cecília Meireles


Varre o chão de cócoras.
Humilde.
Vergada.
Adolescente anciã.
Na palha, no pó
seu velho sári inscreve
mensagens ao sol
com o tênue galão dourado.
Prata nas narinas,
nas orelhas,
nos dedos,
nos pulsos.
Pulseiras nos pés.
Uma pobreza resplandecente.
Toda negra:
frágil escultura de carvão.
Toda negra:
e cheia de centelhas.
Varre seu próprio rastro.
Apanha as folhas do jardim
aos punhados,
primeiro;
uma
por
uma
por fim.
Depois desaparece,
tímida,
como um pássaro numa árvore.
Recolhe à sombra
suas luzes:
ouro,
prata,
azul.
E seu negrume.
O dia entrando em noite.
A vida sendo morte.
O som virando silêncio.

in: Poesia Completa. Poemas Escritos na Índia

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)