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9 de set. de 2015

Louvor do lixo :: Adília Lopes (Lisboa, 1960)


(quem não viu Sevilha não viu maravilha)

É preciso desentropiar
a casa
todos os dias
para adiar o Kaos
a poetisa é a mulher-a-dias
arruma o poema
como arruma a casa
que o terramoto ameaça
a entropia de cada dia
nos dai hoje
o pó e o amor
como o poema
são feitos
no dia a dia
o pão come-se
ou deita-se fora
embrulhado
(uma pomba
pode visitar o lixo)
o poema desentropia
o pó deposita-se no poema
o poema cantava o amor
graças ao amor
e ao poema
o puzzle que eu era
resolveu-se
mas é preciso agradecer o pó
o pó que torna o livro
ilegível como o tigre
o amor não se gasta
os livros sim
a mesa cai
à passagem do cão
e o puzzle fica por fazer
no chão

12 de mai. de 2015

Passeio pelas estantes da biblioteca :: Jostein Gaarder e Klaus Hagerup

Jacek Yerka
Passeio pelas estantes da biblioteca. Os livros me dão as costas. Não para me rejeitar, como as pessoas: são convidativos, querendo apresentar-se a mim. Metros e mais metros de livros que nunca poderei ler. E sei: o que aqui se oferece é a vida, são complementos à minha própria vida que esperam ser postos em uso. Mas os dias passam rápido e deixam para trás as possibilidades. Um único desses livros talvez bastasse para mudar completamente a minha vida. Quem sou eu agora? Quem eu seria então?

In: A biblioteca mágica de Bibbi Bokken. Companhia das Letras, 2003. 

16 de jan. de 2015

A INVENÇÃO DE UM MODO :: Adélia Prado

willian vallim
"Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse:
"Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco ,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando ,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li :
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão."

fonte: Bagagem, 1976.

12 de jun. de 2014

O mais singular livro dos livros :: J. W. Goethe (1749-1832)

Edward Burne-Jones 


O mais singular livro dos livros
É o Livro do Amor;
Li-o com toda a atenção:
Poucas folhas de alegrias,
De dores cadernos inteiros;
Apartamento faz uma secção,
Reencontro! um breve capítulo,
Fragmentário. Volumes de mágoas
Alongados de comentários,
Infinitos, sem medida.
Ó Nisami ! – mas no fim 
Achaste o justo caminho;
O insolúvel, quem o resolve?
Os amantes que tornam a encontrar-se.

De Divan Ocidental-Oriental

9 de fev. de 2014

Cabeceira :: Ana Cristina Cesar

manuscrito de Ana Cristina Cesar 

Intratável.
Não quero mais por poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza 
distraidamente
sobre a minha mão.

13 de dez. de 2013

Primeiro livro de Carlos Ruiz Záfon



Marcos Chin
“…poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo – não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou  esqueçamos -, vamos regressar.”

In: A Sombra do Vento.  Dom Quixote

22 de out. de 2013

A quem se fala quando se escreve ::Edmond Jabès

- A quem se fala quando se escreve?
- A um ser acerca de quem nunca se venha a saber se é si mesmo ou um outro.
- Fala-se a um desconhecido?
- Seria absurdo dizer dessa maneira, porém, é a única coisa que podíamos dizer: não se dirigir a ninguém, quando se fala, talvez seja falar apenas consigo mesmo; mas como falar consigo sem imediatamente fazer de si um outro?
- Sobretudo porque nós somos, nós, esse outro.
- Não estou dizendo isso . Você não me compreendeu, ou, fui eu que não me fiz compreender. Esse outro não é eu mesmo, nem minha invenção. Ele é minha descoberta do outro em mim.
Esboçar o perfil de uma palavra numa folha já é estabelecer uma conversa com a página branca.
Tudo o que vemos, escutamos, tudo do que nos aproximamos, uma vez reconhecido, entra em diálogo conosco.
O livro seria, assim, apenas o espaço circunscrito pela palavra aberta à palavra. Não somos escritos onde ela se escreve, mas inscritos onde ela se apaga.
Há uma linguagem própria que a inscrição tumular nos impõe e nos força ao silêncio. Pesado silêncio em busca de um signo.
Ah! outro - homem, mundo, Deus - mais nós mesmos do que poderíamos sê-lo no segredo de nossas confissões; palavra de uma palavra à qual não ousamos ligar nosso nome; pois se somos tributários dela, ela, contrariamente, mais nos escapa do que nos pertence.
Brancura, brancura de sangue. Séculos de orgulho e de derrotas jazem no vocábulo. Você os desperta ao revelá-lo.
Um livro se entreabre quando nos abandonamos.

tradução: Caio Meira

23 de mar. de 2013

Fundo de livro de Maria Gabriela LLansol

UPage

Eu sei que, pouco a pouco,
passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem.
E teremos, então, uma inquietação mais simples.

fonte: Um Beijo Dado Mais Tarde

24 de jun. de 2012

O Mundo Está tão Cheio de Livros como Falto de Verdades de Antonio Vieira


O mundo está tão cheio de livros, como falto de verdades. E oxalá que nos homens fossem de algum modo tantos os frutos, quantas são sem número nos livros as folhas; mas a desgraça é que, por mais que sejam muitos os notadores dos livros, são muito mais os que no mundo vivem notados; e não basta vermos encadernados os livros, para que deixemos de ver desencadernados os homens. Com efeito, são os livros os suores dos homens ou o engenho dos homens; e está o mundo tão emendado, que já ninguém vive do suor alheio.

Padre Antonio Vieira, in "As Sete Propriedades da Alma"

13 de jun. de 2012

Liberdade de Fernando Pessoa


Matizes


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira 
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca....


20 de mar. de 2012

As palavras mais preciosas de Chico Buarque


"A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais."
Chico Buarque no prefácio do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: Ideias Afins/Thesaurus de Francisco Ferreira Dos Santos Azevedo. LEXIKON, 2010.

29 de jan. de 2012

Meu avô de Débora Siqueira Bueno




"SONHO Na verdade, sonhar é outra maneira de lembrar."  Freud 

Essa noite sonhei com o pai de minha mãe, 
meu avô bonito e mudo. 
No sonho ele falava comigo, 
reclamava de eu ter dito bom dia. 
– É porque eu gosto do senhor, Vô! 
Estava no meu quarto de menina. 
Acomodei-o para que dormisse, 
mas ele prosseguiu e conversava. 
Seus olhos claros tinham um brilho 
que a vida embaçou e nunca vi. 
A voz cascateava, alegre até, 
num tom que também não conheci. 
Meu avô falava grego e latim; 
criança, quis achar sua linguagem. 
Às vezes brincava quieta ao seu lado, 
horas. 
Olhava-o de soslaio, tímida sorria, 
esperando que a vida aparecesse. 

Uma vez vieram seus irmãos, 
os nomes muito antigos: 
Gamaliel, Arcelino, 
Alberico, Pergentino. 
Sóbrios, com seus chapéus na mão, 
traziam os cheiros da fazenda. 
Doce de leite, goiabada e rapadura 
os presentes dados. 
A conversa era pausada, 
Siqueiras são circunspetos. 
Sentados na varanda em frente ao rio 
o que mais se ouvia era a voz das águas. 
Foi quando ouvi a voz do meu avô, 
única vez. 

Meu avô me dava livros, muitos, 
devolvidos à minha avó porque pensava 
que me eram dados por engano. 
Sobraram dois – 
um, de botânica, 
o outro, de uma coleção – Pensamento Vivo, 
O pensamento vivo de Freud. 
Meu nome está escrito – 
a mim foi dedicado. 
Foi assim que meu avô falou comigo, 
só o descobri depois, muito depois. 

Manuseio o livro amarelado, 
repleto de anotações nas margens. 
Sítio arqueológico, traz impressas 
mensagens destinadas ao futuro. 
Ao final encontro, frases soltas – 
"O eterno presente – onde o tempo não passa. 
Momento da liberdade, 
onde não há recordações do passado, 
nem as inquietações do futuro. 
Porém, a vida palpita sempre. 
Sonhada felicidade, o futuro, 
visão de esperança". 

Meu avô no sonho ria, satisfeito, os dentes lindos.

4 de dez. de 2011

Mis libros de Jorge Luis Borges (1899-1986)

Romans Parisiens (Les Livres Jaunes) 1887, Vincent Van Gogh

Mis libros (que no saben que yo existo)

son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

.....

Meus livros (que não sabem que eu existo)
São tão parte de mim como este rosto
De fontes grises e de grises olhos
Que inutilmente busco nos cristais
E que com a mão côncava percorro.
Não sem alguma lógica amargura
Penso que as palavras essenciais
Que me expressam se encontram nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes dos mortos
Vão me dizer para sempre.

28 de nov. de 2011

ODA AL LIBRO (II)


LIBRO
hermoso,
libro,
mínimo bosque,
hoja
tras hoja,
huele
tu papel
a elemento,
eres
matutino y nocturno,
cereal,
oceánico,
en tus antiguas páginas
cazadores de osos,
fogatas
cerca del Mississippi,
canoas
en las islas,
más tarde
caminos
y caminos,
revelaciones,
pueblos
insurgentes,
Rimbaud como un herido
pez sangriento
palpitando en el lodo,
y la hermosura
de la fraternidad,
piedra por piedra
sube el castillo humano,
dolores que entretejen
la firmeza,
acciones solidarias,
libro
oculto
de bolsillo
en bolsillo,
lámpara
clandestina,
estrella roja.

Nosotros
los poetas
caminantes
exploramos
el mundo,
en cada puerta
nos recibió la vida,
participamos
en la lucha terrestre.
Cuál fue nuestra victoria?
Un libro,
un libro lleno
de contactos humanos,
de camisas,
un libro
sin soledad, con hombres
y herramientas,
un libro
es la victoria.
Vive y cae
como todos los frutos,
no sólo tiene luz,
no sólo tiene
sombra,
se apaga,
se deshoja,
se pierde
entre las calles,
se desploma en la tierra.
Libro de poesía
de mañana,
otra vez
vuelve
a tener nieve o musgo
en tus páginas
para que las pisadas
o los ojos
vayan grabando
huellas:
de nuevo
descríbenos el mundo
los manantiales
entre la espesura,
las altas arboledas,
los planetas
polares,
y el hombre
en los caminos,
en los nuevos caminos,
avanzando
en la selva,
en el agua,
en el cielo,
en la desnuda soledad marina,
el hombre
descubriendo
los últimos secretos,
el hombre
regresando
con un libro,
el cazador de vuelta
con un libro,
el campesino arando
con un libro.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)