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8 de mar. de 2019

Surpresa :: Clarice Lispector

John William Waterhouse

Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, 
com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.
Laços de Família. Editora Rocco, 1998. p. 19

26 de set. de 2016

Amor à primeira vista de Wislawa Szymborska



Os dois estão convencidos
de que foi um sentimento súbito que os juntou.
É bela uma certeza como essa,
mas é mais bela a incerteza.

Acham que por não se terem conhecido antes
nunca houve nada entre eles.
E o que diriam as ruas, escadas, corredores,
onde há muito podiam se cruzar?

Queria perguntar-lhes
se não lembram –
na porta giratória talvez
um dia cara a cara?
em meio à multidão um “com licença”?
no telefone a voz “engano”?
– mas conheço sua resposta.
Não, não se lembram.

Ficariam surpreendidos de saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Não preparado ainda
a transformar-se para eles num destino,
aproximava-os e os afastava,
cortava-lhes o caminho
e, abafando a gargalhada,
saltava para o lado.

Houve sinais, signos,
só que ilegíveis.
Talvez há três anos atrás
ou na terça-feira passada
certa folha voou
de um ombro para o outro?

Houve algo perdido e recolhido.
Quem sabe, uma bola
já no bosque da infância.

Houve maçanetas e campainhas,
em que antes
já o toque se punha no toque.
As malas lado a lado no depósito de bagagem.
Talvez, numa certa noite, o mesmo sonho
apagado imediatamente depois de acordar.

Pois cada princípio
é apenas uma continuação,
e o livro de eventos
sempre aberto no meio.
Wisława Szymborska (Kórnik, 2 de Julho de 1923 — Cracóvia, 1 de fevereiro de 2012)

23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

9 de out. de 2015

A Tempestade do Destino :: Haruki Murakami

Camille Corot 

Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.
(...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.

 in: Kafka à Beira-Mar. Casa das Letras,  2006.

27 de mar. de 2015

Disritmia :: Adélia Prado

Os velhos cospem sem nenhuma destreza

e os velocípedes atrapalham o trânsito no passeio.

O poeta obscuro aguarda a crítica

e lê seus versos, as três vezes por dia,

feito um monge com seu livro de horas.

A escova ficou velha e não penteia.

Neste exato momento o que interessa

são os cabelos desembaraçados.

Entre as pernas geramos e sobre isso

se falará até o fim sem que muitos entendam:

erótico é a alma.

Se quiser, ponho agora a ária na quarta corda,

para me sentir clemente e apaziguada.

O que entendo de Deus é sua Ira,

não tenho outra maneira de dizer.

As bolas contra a parede me desgostam,

mas os meninos riem satisfeitos.

Tarde como a de hoje, vi centenas.

Não sinto angústia, só uma espera ansiosa.

Alguma coisa vai acontecer.

não existe o destino.

Quem é premente é Deus.

In:  Poesia Reunida. Siciliano.

4 de dez. de 2014

Pont solferino :: Alice Sant'Anna

Les arbres des quais avec le Pont-Neuf - Brassai, 1945

foi escolha sua saltar 
muito antes do destino
só para atravessar uma 
ponte
curioso isso de atravessar 
pontes
e cruzar um lugar impossível 
sobre o sena
sobrevoando mesmo 
os bateaux mouches
a vista privilegiada
de uma tarde muito azul
apesar do vento: essas árvores 
amarelas que pipocam 
no outono


13 de nov. de 2014

Minha mãe me disse :: Elba Serafini

Walasse Ting
Minha mãe me disse
que todos os mortos são anjos,
escutas prováveis
de nossos rogos
deve-se apenas pedir em alta voz
e esperar em silêncio
uma resposta, ter paciência,
depositar em outro 
nosso destino

Assim, a crença inusitada
se alimenta
de um imaginário
círculo de perfeição
sobre a terra.

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Mi madre dice

que todos los muertos son ángeles,
potenciales escuchas
de nuestros ruegos
solo hay que pedir en voz alta
y esperar en silencio
una respuesta, ser pacientes,
depositar en otro
nuestro destino.

Así, la inusitada creencia
se alimenta
de un imaginário
círculo de perfección
sobre la tierra.

fonte: DINAMARCA. Buenos Aires: Sigamos Enamoradas, 2007.

3 de out. de 2014

DEVÍAMOS :: Ana Blandiana ( 1942 Timisoara, Romania)

Boris Kustodiev

Devíamos nascer velhos,
despertos, capazes de decidir
nosso destino na Terra,
saber que caminho tomar
desde a primeira encruzilhada
e que irresponsável fosse apenas
o desejo de ir mais longe.
Depois, pormo-nos a caminhar,
cada vez mais jovens,
alcançar maduros e fortes
as portas da criação,
atravessá-las e entrar apaixonados
na adolescência,
sendo crianças quando nos nascessem os filhos.
Estes seriam assim sempre mais velhos que nós,
ensinando-nos a falar
e embalando-nos para dormir,
desapareceríamos pouco a pouco,
cada vez mais pequenos,
como um grãozinho de uva, de ervilha ou de trigo...



29 de jun. de 2014

Não sou areia :: Lya Luft

Botticelli
Não sou areia 
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
não sou apenas a pedra que rola
na marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério.

A quatro mãos escrevemos o roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

13 de jun. de 2014

Lua e estrela :: Caetano Veloso



Menina do anel 
De lua e estrela 
Raios de sol 
No céu da cidade 
Brilho da lua 
Noite é bem tarde 
Penso em você 
Fico com saudade 
Manhã chegando 
Luzes morrendo 
Nesse espelho 
Que é nossa cidade 
Quem é você? 
Qual o seu nome? 
Conta pra mim 
Diz como eu te encontro 
Mas deixa o destino 
Deixa o acaso 
Quem sabe eu te encontro 
De noite no baixo 
Brilho da lua 
Noite bem tarde 
Penso em você 
Fico com saudade 

Mas deixa o destino 
Deixa o seu castro 
Quem sabe eu te encontro 
De noite no baixo 
Brilho da lua 
Noite bem tarde 
Penso em você 
Fico com saudade 



15 de dez. de 2013

Raros momentos de Carlos Ruiz Zafón


“Naquela noite, Mikhail contou-me que a vida concede a cada um de nós raros momentos de pura felicidade. Às vezes são apenas dias ou semanas. Às vezes, anos. Tudo depende do nosso destino. A recordação desses momentos acompanha-nos para sempre e transforma-se num país da memória a que procuramos regressar durante o resto da nossa vida sem o conseguir.”

Carlos Ruiz Zafón, Marina, Planeta

15 de out. de 2013

A sensação da beleza de Cecília Meireles



( ... )
A sensação da beleza ,
o sentimento de perfeição 
que residem na harmoniosa
arquitetura das flores são lições para a vida humana.
Pudéssemos ser também assim,
tão exatos como as flores em suas pétalas,
tão silenciosos
 na realização de um destino impecável,
e tão prontos para morrer no momento justo !
( ... )

Crônicas de viagem, v.3. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. p. 284

4 de jun. de 2013

Filosofia - Pablo Neruda

Vermeer- O astronomo (1668) 

Fica provada a certeza
da árvore verde na primavera
e do córtex terrestre
- alimentam-nos os planetas
apesar das erupções
e o mar nos oferece peixes
apesar de seus maremotos -
somos escravos da terra
que também é dona do ar.

Passeando por uma laranja
eu passei mais de uma vida
repetindo o globo terrestre
- a geografia e a ambrosia -
os jogos cor de jacinto
e um cheiro branco de mulher
como as flores da farinha.

Nada se consegue voando
para se escapar deste globo
que te aprisionou ao nascer.
E há que confessar esperando
que o amor e o entendimento
vêm de baixo, se levantam
e crescem dentro de nós
como cebolas , azinheiras,
como tartarugas ou flores,
como países, como raças,
como caminhos e destinos.

Neruda, Pablo. O coração amarelo/Neftali Ricardo Reyes; tradução Olga Savary - Porto Alegre: L&PM, 2010.

5 de mai. de 2013

Trem andando de Bartolomeu Campos de Queirós

Delvaux, Paul - Soledad (1955)

“Durante quatro estações, em todas as manhãs, o trem deslizava em frente de nossa casa. Nascia na cidade de um avô, que escrevia nas paredes, e morria na cidade de outro avô, com seu olho de vidro. Sempre suspeitei o nascer como entrar num trem andando. Só que não sabia de onde vinha nem para onde ia. E, no meu vagão, não escolhi companheiros para a viagem. Eram todos estranhos, severos, amargos, impostos. Também entrei sem comprar o bilhete de viagem. Minha bagagem, pequena, cabia debaixo do banco – da segunda classe – sem incomodar. Contrabandeava poucos pertences: uma grande dor que doía o corpo inteiro e a vontade de encontrar um remédio capaz de remediar o incômodo. Até hoje o mundo ainda não atracou. Vou sem escolher o destino. O trem estancava na minha cidade, trocava de carga e reabastecia-se. O mundo só nos permite uma baldeação definitiva.”

Vermelho amargo. Cosac Naify: 2011. p. 37-38

2 de mai. de 2013

A velhice de Leonardo Boff

Henri Matisse, 1939. foto de Gyula Halasz

Ao completar 70 anos, Boff escreveu um texto intitulado Oficialmente velho, no qual comenta o que é a velhice:

[...] A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino.

Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.

A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. (...) A velhice é uma exigência do homem interior. 

Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.

BOFF, Leonardo. Oficialmente velho. 2008. Disponível em:

28 de mar. de 2013

Sempre que se começa a ter amor a alguém de Guimarães Rosa



Sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando, mas quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.
In: Grande sertão: veredas. Nova Fronteira, 2001. p. 155.

22 de jan. de 2013

O poema que tomou o lugar de uma montanha de Wallace Stevens


Ei-lo, palavra por palavra,
O poema que tomou o lugar de uma montanha.
Ele respirava no seu oxigênio,
Mesmo quando o livro jazia voltado sobre o pó da mesa.
Recordava-lhe o quanto tinha precisado
De um destino para o seu próprio rumo,
Como tinha reordenado os pinheiros,
Movido as pedras e escolhido um caminho por entre as nuvens,
Pela perspectiva que mais lhe convinha
Onde se acharia inteiro numa inexplicada inteireza:
A exata rocha onde as suas inexatidões,
Descobririam, por fim, a vista para a qual tinham avançado,
Onde poderia deitar-se, fitando o mar lá em baixo,
E reconhecer a sua única e solitária casa.


27 de dez. de 2012

Inscrição de Cecilia Meireles

Sou entre flor e nuvem, 
Estrela e mar. 
Por que havemos de ser unicamente humanos, 
Limitados em chorar? 

Não encontro caminhos 
Fáceis de andar. 
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras 
Que não sabem de água e de ar. 

E por isso levito. 
É bom deixar 
Um pouco de ternura e encanto indiferente 
de herança, em cada lugar. 

Rastro de flor e estrela, 
Nuvem e mar. 
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: 
A sombra é que vai devagar.

2 de dez. de 2012

Meu destino de Cora Coralina

Oskar Kokoschka

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes -
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos. 
Passavas com fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos. 
Esse dia foi marcado 
com a pedra branca 
da cabeça de um peixe. 
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...


In Meu Livro de Cordel

28 de nov. de 2012

A MULHER DO ELEVADOR de Carlos Drummond de Andrade




A que ficou lá longe, na grande cidade...


A que eu vi apenas um minuto, um minuto somente,
no elevador que subia.


Com que saudade inédita eu me lembro
da que não foi nem uma sombra, uma sombra fugaz,
no meu destino.


Da que ficou, sorrindo, com um pouco de mim,
com um pouco do meu ser anônimo e vulgar,
a milhares de quilômetros, na grande cidade...


poema inédito de Drummond escrito na juventude. 
Fonte: Revista Bravo nº 178, junho de 2012

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)