23 de ago. de 2016

O remo sou eu mesmo... Mia Couto


Meu pai me queria confessar intimidades. Que o avô tinha falado com ele. E lhe mostrara como ele, o meu pai, não sendo o mais idoso era o mais envelhecido de todos nós. Porque era o mais desistido de tudo, o mais alheio ao alento e à crença. Aquela chuva se imobilizava junto ao solo? Pois também ele, o meu pasmado pai, tinha estancado junto à vida. O avô entendera o porquê da desistência de meu pai viver, o falir da sua esperança. O verdadeiro motivo daquela modorra não era ele ter estado, anos e vidas, fechado nas minas. Todo homem, afinal, está sempre saindo de um subterrâneo escuro. É por isso que tememos os bichos que vivem nas tocas -, partilhamos com eles esse mundo feito de trevas, segredos murmurados por demónios em chamas. O verdadeiro motivo de meu pai ter desistido era porque ele se pensava como o centro de si mesmo. Meu pai estava entupido de si próprio. Ele fora sufocado pelo seu umbigo.
      A solução era sair de dentro de si, arregaçar as mangas e os braços, arregaçar a alma inteira e tomar a dianteira sobre o destino.
      - Você já escavou no fundo da terra. Escave agora no céu.
      Foi assim que o avô falou. Meu pai entendeu, sem mais explicação. O avô queria a viagem. Na outra margem estava Ntoweni. Do outro lado do chuvilho estava um rio parado.
      A canoa e mais a viagem fariam a ponte que faltava.
      - A ponte entre o rio e a chuva? - perguntei.
      - A ponte entre eu e você, meu filho.
      Sim, porque a ponte entre ele e minha mãe já estaria refeita, a paixão renascida da cinza pela fagulha do ciúme.
      - Eu me sinto na boca da mina, espreitando a claridade. Sua mãe me dá à luz. É isso que eu sinto. Você lembra como dizia o avô?
      Dizia? Meu pai já falava do avô no passado. Abanei a cabeça em recusa desse tempo de verbo mais do que em resposta a meu pai.
      - O amor não é a semente. O amor é o semear. Era assim que o mais-velho dizia.
      Nos erguemos, sem pressa, para subir a ladeira. Meu velho espiou-me o semblante para confirmar a minha tristeza.
      - Não fique triste, filho. Que tudo isso é um engano. Não é o morrer que é para sempre. O nascer é que é para sempre.
      E fomos buscar o avô. Trouxemo-lo nos braços como se ele fosse uma criança. Depois o deitámos no barco. Meu pai apontou a proa em direcção ao mar. Eu coloquei os remos dentro da canoa. Mas ele devolveu-mos.
      - Não preciso. O remo sou eu mesmo...
fonte: A Chuva Pasmada. Editorial Caminho, 2004.

Nenhum comentário: