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20 de nov. de 2013

Desato :: Viviane Mosé

É preciso fritar o arroz bastante antes de jogar água fervendo.
E não pode mexer jamais depois de a água ser posta.
O alho deve fritar no óleo junto com o arroz.

Coisas que eu sei e que não. Eu sei muitas coisas.
Faxina por exemplo. Sei limpar uma casa de tal modo
Que não sobra um canto que não tenha sido tocado
Por minhas mãos.
Depois vou sujando. Com muito gosto.
Deixo peças na sala e louças sujas na pia.
Não na mesma hora mas um pouco
Bastante depois volto limpando.
Assim me faço.
Nos objetos que me acompanham.

Gosto de andar nas ruas e comprar coisas
Que vão se arrumando em torno de mim.
Tenho muitas coisas, quero dizer, tenho muitas camadas.
Uma camada de livros outra de sapatos.
Tem a camada de plantas. E toalhas de rosto.
Tenho camadas de cosméticos e de adereços.
Uma camada de nomes e de coisas que vejo.
Tudo ordenado ao meu redor. Em forma de corpo.
Um corpo que me sustenta quando o meu próprio me falta.

Cadeiras são meus ossos. Sapatos são meus braços.
Torneiras em meus poros. Paredes como roupas de inverno.
(Quando toca música em minha casa sai do umbigo)

Descanso recostada nas paredes da casa
Que me guardam como um abraço.
Me abraço quando me derramo na sala.
E na cozinha. Em geral adormeço no quarto.

Tudo em minha casa tem existência.
Todas as coisas significo.
Com os olhos. Ou com as mãos.
Minha casa tem silêncios
Que às vezes ouço. Em meu corpo
Tem silêncios maiores ainda.
Que às vezes ouço. E faço poemas.
Faço poemas dos silêncios que ouço.

10 de jun. de 2012

As coisas, os outros e os escombros de Contardo Calligaris


1) Os amigos que encontro, nesta volta de viagem, querem saber do terremoto na Itália. Como foi? O que pensei e senti? Pois é, o terremoto não me inspirou pensamentos sobre a fragilidade da existência e a força da natureza -ou outro lugar-comum que valha.
Na hora, só tive iniciativas práticas. Como já contei, logo no primeiro tremor, juntei numa pasta passaportes, bilhetes de avião e carteiras. Nos dias seguintes, me deslocava sempre com esses apetrechos e, de noite, deixava ao lado da cama uma bolsa que continha a tal pasta mais o necessário para que a gente, pulando da cama para a rua, aguentasse o frio e a chuva.
Será que eu me preocupava com nossa mobilidade, ou seja, com a possibilidade de irmos embora sem burocracia, em caso de catástrofe? Ou será que me preocupava em termos constantemente conosco uma prova de nossa identidade?
2) Na madrugada do primeiro tremor, no dia 20, fiquei acordado até a luz do dia, para não ser surpreendido por eventuais tremores de assentamento. Passei o tempo olhando para as coisas ao meu redor.
Nos 60 anos em que meus pais mantiveram um apartamento em Veneza, eles abarrotaram seu espaço: nada de grande valor (afinal, o lugar fica desocupado durante boa parte do ano), mas muitos objetos carregados de história familiar, marcados pelas mãos e pelos olhares dos meus pais, avós ou bisavós. De cada objeto que considerei, tentei me contar a história: de onde vinha? De quem fora? Como chegara até lá?
Talvez o livro mais bonito e tocante que li nos últimos meses tenha sido "A Lebre com Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca).
É a história de uma família, narrada, por assim dizer, por uma coleção de miniaturas japonesas que passa, ao longo de quase dois séculos (cheios de fúria e guerras), de mão em mão, de país em país e de um continente a outro.
Sem dúvida, há objetos que são melhores sedimentos da história do que outros. Uma miniatura japonesa, por exemplo, já nasce como vestígio da história de quem a entalhou -às vezes, meses ou anos a fio.
Mas, no fundo, qualquer objeto, até um artefato industrial, tenta contar sua história. Qualquer mercadoria pode nos falar do trabalho de quem a produziu e dos desejos dos que a compraram, perderam ou trocaram. O que acontece, em geral, é que a gente não se dá o tempo de escutar.
Logo na região devastada pelo terremoto, nos claustros de San Pietro, em Reggio Emilia, está aberta até outubro (tremores permitindo) a exposição "Gli Oggetti ci Parlano" (os objetos falam conosco). Uma busca on-line explica a iniciativa e permite ver, em vídeo, partes da mostra: os cidadãos de Reggio foram convidados a emprestar objetos pessoais que tivessem, para eles, uma história significativa -a qual eles contam em depoimentos filmados.
3) Parêntese: já na primeira noite, lembrei-me de uma recomendação de meu pai, com sua sabedoria de clandestino procurado por fascistas e nazistas: "Se você fugir, não volte atrás". E ele agregava exemplos de resistentes que fugiram a tempo, mas quiseram voltar, rapidamente, para pegar algo que tinham esquecido ou mesmo só para olhar sua casa pela última vez -e foram presos.
Confirmando o conselho de meu pai, no segundo terremoto, o do dia 29, morreu o padre Martini, em Rovereto; ele voltou para a igreja de Santa Caterina, já periclitante desde o dia 20 -só um instante, para recuperar uma imagem santa. Entrou exatamente na hora do tremor das nove da manhã.
4) Passei minha infância brincando e fuçando nos escombros (de bombardeios aéreos, não de terremotos, claro). Imagino que, se minha casa fosse demolida, mesmo se não houvesse vítimas, eu ficaria, mexendo no entulho -mas à procura do quê? De uma jarra de prata que não se amassou além da conta, de uma cerâmica que não quebrou, de um livro que sobreviveu?
É fácil dizer que tanto faz, "deixa para lá: o passado está na gente, na nossa lembrança". Fácil e um pouco falso: nossa identidade é sempre dispersa aos quatro ventos. Ela está nas pedras, nas coisas e nos outros.
A clínica constata que as vítimas das grandes catástrofes, quando erram pelos entulhos, entre corpos e restos, não sabem mais direito quem elas são. O que elas procuram é sua própria identidade, que estava nas coisas, nas pedras e nos outros que se perderam.

João Fasolino (1987, Rio de Janeiro)